FERNANDO TORDO “RESOLVI MUDAR A MINHA VIDA ANTES QUE OUTROS FATORES ME MUDASSEM A MIM”
Aos 70 anos, está a gravar um disco de duetos e a preparar concertos para Lisboa, Tivoli, no dia 18, e Porto, Casa da Música, no dia 27, com o seu octeto e convidados. Quer usar o tempo a ouvir no gira-discos, com amplificação do tempo dos primeiros namoros, a música de que mais gosta – Shadows, Tony Bennett, Count Basie, Bernard Herrmann. Em vinil, claro. Está pronto para voltar a concorrer ao festival da canção, se tudo correr bem. Conhecemo-nos há tanto tempo que não nos tratarmos por tu ficaria artificial. Setenta anos de vida é muito? É fantástico, olha para mim. Sinto-me muito bem, sempre com vontade de trabalhar, de viajar, de fazer coisas, principalmente de me rir. Não sei se é o canto do cisne, se é a gargalhada do pato. Há qualquer coisa que me estimula o riso permanentemente. Nasceste em Lisboa a 29 de março. Com 5,300 quilos, queixava-se a minha mãe. Nasci em casa dos avós maternos e aí me tornei alfacinha. Gosto da Lisboa dos anos 1950. A gente jogava hóquei com uns sticks e uma bola dos matraquilhos, na Avenida da Igreja, de sarjeta a sarjeta. Passava um carro e a malta ficava irritada. Um carro? A gente num torneio internacional e vem um gajo com um carro? Quem sofria o golo metia a mão na sarjeta. Estás a viver em Portugal? Definitivamente. Estive quatro anos no Brasil, mais tempo do que supunha, porque há coisas de que gosto. Faço uma canção e adoro telefonar para um músico, vamos arranjar isto, vamos gravar. Não gravo com a preocupação lancinante de vender discos. Hoje não se vende discos, grava-se porque é curricular. Ficaria muitos anos a viver no Brasil, mas a minha vida não é só música e não quero ter receio, fechar os vidros do carro porque é meio-dia e meia. Tinha o lado bom de teres músicos? Os músicos, o entendimento musical, a rapidez e a qualidade com que se grava. Os meus discos provam-no. Gravei um disco [O Outro Canto] que foi prémio da Sociedade Portuguesa de Autores, em 2016, o “melhor disco da língua portuguesa”. É um prémio de especialistas da música, fiquei doido de satisfação quando me disseram “a SPA atribuiu-te o Prémio Pedro Osório”. Sou o português que mais gravou com o Pedro Osório. As orquestrações com arranjos dele é como se tivessem sido gravadas ontem. Com que é que a gente atravessa o tempo? Com que é que a gente dá cabo dele? É com o bom que fazemos. Não se vende discos? Vende-se discos num concerto, é o que os artistas fazem em todo o mundo. Está-se um bocadinho à conversa, assina-se uns discos. O importante é ter a selfie e o autógrafo. Há cada vez mais espetáculos porque as pessoas querem esse contacto, querem saber se o que ouviram na rádio é reproduzido no palco ou se é uma treta. Estou a gravar o meu disco de duetos, [Fernando Tordo, Duetos, Diz-me com Quem Cantas] com o Rui Veloso, a Carminho, o Tim, o Jorge Palma. Canções minhas. Quem vai cantar o Cavalo à Solta? O Jorge Palma. Começo amanhã [ontem] a gravar com o Herman José, a Lisboa de Feira. Temos a Marisa Liz [Amor Electro], que conheço de criança – com O Amigo Que Eu Canto. Com a Rita Redshoes, que é muito musical, vou cantar Nº 2 – 6º Andar Frente. A Carminho vai cantar comigo a Estrela da Tarde. O Ricardo Ribeiro vai cantar o mais fabuloso texto de Ary dos Santos para música, Se Digo Meu Amor. Sigo o exemplo do Tony Bennett, que procura uma coisa que sabe que não existe, que não alcança, a excelência. Andas a ensaiar para os concertos? Ponho o pessoal no palco, arrumem-se para aí e não toquem muito alto, não façam muito barulho. O octeto é o octeto e eu sou eu, não quero cá misturas, misturas só nos discos que é o que se faz depois de gravar. É tudo organizado pelo Filipe Cordeiro, que toca trompa e é meu assistente. Trabalho com dois orquestradores, gente nova, Lino Guerreiro e Valter Rolo. E tenho convidados. Em Lisboa são o Ricardo Ribeiro, a Marisa Liz e a Anabela, no Porto vou ter também a Anabela e a minha querida Rita Redshoes. O meu filho Filipe Manzano vai tocar nos dois concertos Os Cantores da Minha Terra, um dos duetos do disco. Começaste a carreira aos 16 anos. São 50 anos de compositor e intérprete. Mas no total, de músico, são 54. Conto a carreira profissional a partir do primeiro contrato pago, numa festa de finalistas do Liceu Francês. O que cantavas nessa altura? Aquele repertório do No Milk Today, Hollies e Beatles e, voilà, Cliff Richard e Shadows. Não tinha coragem de pedir aos meus pais dinheiro para discos. Aprendi a ouvir os discos em casa dos amigos. Percebi que o instrumento soava melhor se estivesse afinado e aprendi a afinar guitarras com os Shadows. A paixão que tenho por esses tipos é enorme. Aquilo continua afinado, está sempre certo, é muito belo, foi uma revolução na música. Os Beatles imitaram a formação deles: bateria, viola baixo, guitarra de acompanhamento, guitarra solo. Hoje mando vir os discos, recebo-os em casa. Em vinil? Em vinil. Quero passar agora uns anos na minha garagem, com o meu gira-discos
“Jogávamos hóquei com uns sticks e uma bola dos matraquilhos, de sarjeta a sarjeta, na Avenida da Igreja. Passava um carro e a malta ficava irritada” “Resolvi mudar a minha vida antes que outros fatores, como o álcool, me mudassem a mim. Às tantas a garrafa ia-me beber” “Sou da geração que ajudou a coser os paninhos, os bocados de trapo que fizeram caminho para se poder ganhar algo que era um trauma nacional”
com uma amplificação dos bailaricos dos 15 ou 16 anos. Vou pôr os discos dos meus cantores preferidos e outra música de que gosto, Count Basie, Oscar Peterson, Tony Bennett. Mandei vir coisas de um génio da música para cinema, o Bernard Herrmann, que trabalhou nos filmes fantásticos e misteriosos do Alfred Hitchcock. Tenho lá quatro discos que me mandaram, deve ser o fim do mundo Numa entrevista [Alta Definição, SIC] falaste de alcoolismo, de suicídio. Aos 70 anos, é o que queres dizer? Está na hora de me explicar, especialmente aos meus filhos. Não sou mentiroso nem desonesto, sou um tipo muito sério, mas chegou a hora de dizer certas coisas que nunca terei dito. Já tinha dito que frequentava os Alcoólicos Anónimos há doze anos. Resolvi mudar a minha vida antes que outros fatores – o álcool, por exemplo – me mudassem a mim. Às tantas a garrafa ia-me beber. Deixaste de beber há quanto tempo? Doze anos, e de fumar também. Estamos num país com mais de 300 mil pessoas metidas a sério no álcool. Posso ajudar, sou um bom exemplo. Tenho de dizer que é possível viver-se feliz e dar uma entrevista na TSF e passar o tempo divertido sem ter bebido mais do que uma garrafa de água. O telefone começou a tocar, as pessoas surpreendidas porque um tipo resolveu dizer coisas verdadeiras sobre a vida. A verdade já é uma coisa surpreendente. Pode-se ser verdadeiro, não faz mal nenhum, pode-se assustar as pessoas com a verdade. Vivo tranquilo, leio os meus livros, pinto muito. Continuas a pintar? Pintar serve-me para não enlouquecer, porque não paro de fazer música. Não consigo parar. Tenho muitos instrumentos e vou experimentar um e depois outro e pego noutro. Estou sempre a fazer música, sempre a fazer canções. Cansa-me. Posso fazer as duas coisas, pintar e compor uma música ao mesmo tempo, é sensacional. Ouvi-te cantar Amar pelos Dois, de Salvador Sobral. É especial? O acontecimento que gerou é especial. Sou de uma geração que ajudou a coser os paninhos, as alcatifas, os bocados de trapo, o cartão canelado que fizeram o caminho para que alguém pudesse ganhar uma coisa que era uma espécie de um trauma nacional. Foram feitas propositadamente grandes canções que fazem parte do acervo da música em Portugal. E depois um português, com a irmã compositora, apareceu com uma canção que ganhou o Festival da Eurovisão. No Brasil recebi a notícia com o mesmo entusiasmo, a mesma expressão, a mesma lágrima com que recebi a notícia de o José Saramago ser Prémio Nobel. E eu não gostava do José Saramago pessoalmente. Gostei muito dele nos últimos anos, viajei muito com ele. A mesma lágrima de alegria louca. Convoquei os meus três músicos no Recife, fizemos um arranjo e gravei, a gravação existe, não está ainda publicada. Enviei para cá a minha homenagem a alguém que tinha conseguido o inimaginável.