Diário de Notícias

50 ANOS DEPOIS LUTHER KING TEM HERDEIROS MAS O SONHO CONTINUA POR REALIZAR-SE

A vida dos afro-americanos é melhor, mas ganham menos e a taxa de detenção é seis vezes superior à dos brancos.

- HELENA TECEDEIRO

A frase “Eu tenho um sonho de que os meus quatro filhos pequenos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo seu carácter”, pronunciad­a por Martin Luther King (MLK) em Washington em 1963, chamou a atenção para os seus descendent­es. Passado meio século do assassínio do ativista dos direitos cívicos,Yolanda Renée King subiu a um palco na mesma cidade para repetir as palavras do avô antes de acrescenta­r: “Eu tenho um sonho de que basta. Que este deve ser um mundo livre de armas. Ponto final.” Única neta de Martin Luther King, Yolanda, 9 anos, assim chamada em homenagem à tia morta um ano antes de ela nascer, parece ter herdado os dotes oratórios do avô. Mas se ela é a herdeira de sangue, não faltam ainda hoje herdeiros políticos – do reverendo Jesse Jackson a Oprah Winfrey, de Barack Obama a Bernie Sanders – empenhados em prosseguir um sonho que teima em fugir.

De vestido azul e peluche na mão,Yolanda tinha 4 anos quando assistiu ao lado do pai, Martin Luther King III, e do então presidente Obama à celebração dos 50 anos da Marcha de Washington. Agora, aos 9 anos podia ter-se ficado pela frase do avô, mas embalou a multidão reunida em Washington num protesto contra as armas, gritando: “Espalhem a palavra. Ouviram? Por toda a nação. Nós vamos ser uma grande geração.” Um discurso a lembrar a mensagem do avô. Resta saber se a veia de ativista se manterá quando crescer.

Quem foi apontado como herdeiro de Luther King foi o próprio Obama. Mesmo se a história do homem que se tornou o primeiro presidente negro dos EUA não podia ser mais diferente da do pastor batista. Nascido no Havai, filho de uma americana branca e de um queniano, educado na Indonésia, e criado pelos avós maternos, Obama só quando se mudou para Chicago e começou a trabalhar no South Side teve o verdadeiro contacto com a América negra. Uma faceta reforçada pelo casamento com Michelle, nascida e criada em Chicago numa família descendent­e de escravos. Mas isso não impediu os afro-americanos de verem na sua eleição a realização do sonho de King. “Hoje celebramos porque um homem deixou o seu santuário e atravessou a nação para garantir que as crianças podem fazer o que Barack Obama está a fazer”, afirmou em 2008 o reverendo Al Sharpton, ele próprio durante um tempo apontado como herdeiro de King, ao qual se refere aqui. O próprio Obama tuitou em janeiro, no Dia de Martin Luther King Jr., como este permanece “uma inspiração permanente para aqueles de nós que procuram justiça”.

Há 50 anos a América reagia em choque e com confrontos raciais à morte de MLK (como é conhecido), atingido a tiro na varanda do Lorraine Motel em Memphis, aos 39 anos. Num ano que veria ainda o assassínio de Robert Kennedy, desapareci­a o pastor a quem a luta pela igualdade racial inspirada no ativismo não violento de Gandhi lhe valera o Nobel da Paz em 1964. Líder do boicote aos autocarros em Montgomery, organizado­r da marcha de Selma, autor de discursos históricos, King destacou-se nos últimos anos de vida pela oposição à Guerra do Vietname. O seu assassino, James Earl Ray, seria detido em junho de 1968 em Londres, após uma passagem de alguns dias por Lisboa. Morreu na prisão em 1998.

Na varanda do Lorraine no dia da morte de Luther King estava Jesse Jackson. O jovem ativista foi um dos homens que ficaram para a história numa foto em que todos surgem a apontar para o local de onde ouviram o tiro que matara o pastor. Duas vezes candidato à nomeação democrata para as presidenci­ais – em 1984 e 1988 –, Jackson perdeu ambas. Apoiante de Obama em 2008, acabou por acusar o candidato de “agir como se fosse branco”. E hoje, aos 76 anos e diagnostic­ado com Parkinson, dedica-se às organizaçõ­es Rainbow/-PUSH. Prova de que a “geração King” está prestes a desaparece­r é que no Congresso dos EUA, o representa­nte da Geórgia John Lewis é o último a ter conhecido MLK.

Os anos seguintes à morte de Luther King viram os direitos dos negros evoluir, muito graças ao Civil Rights Act de 1968. E hoje é inegável que os afro-americanos têm melhores condições de vida do que há meio século. Mas nem tudo é perfeito. Um estudo publicado em fevereiro pelo Economic Policy Institute mostra que por cada dólar ganho por um branco nos EUA, um negro ganha 82,5 cêntimos. E os afro-americanos têm 2,5 vezes mais hipóteses de ser pobres do que os brancos. A taxa de desemprego dos afro--americano situa-se nos 7,5%, contra 4,1% de média nacional. Só 40% dos negros são donos das suas casas, contra 70% dos brancos. E taxa de detenção dos negros é seis vezes mais alta do que a dos brancos nos EUA. Novas lutas Aos velhos problemas juntaram-se, nos últimos anos, novas lutas. A morte de Trayvon Martin em 2013, um jovem de 17 anos morto a tiro na Florida por um homem que acabou ilibado, esteve na origem do Black Lives Matter. Sem uma figura tutelar, este movimento soube usar as novas tecnologia­s para espalhar a sua mensagem num momento em que se multiplica­ram os casos de jovens negros mortos a tiro por brancos.

A chegada ao poder de Donald Trump em janeiro de 2017 e o seu discurso divisivo só vieram agudizar as tensões ra-

É inegável que os afro-americanos têm melhores condições de vida do que há meio século. Mas um estudo do Economic Policy Institute mostra que por cada dólar ganho por um branco nos EUA, um negro ganha 82,5 cêntimos. E taxa de detenção dos negros é seis vezes mais alta do que a dos brancos

ciais. O auge da violência teve lugar em Charlottes­ville em agosto, quando três pessoas morreram e 33 ficaram feridas após confrontos num protesto de nacionalis­tas brancos. O presidente recusou condenar os supremacis­tas brancos, culpando antes os dois lados.

Neste ambiente, bastou um discurso de Oprah Winfrey nos Globos de Ouro para gerar rumores de que a apresentad­ora estaria a ponderar uma candidatur­a às presidenci­ais de 2020. Ela desmentiu mas com a sua história de superação – da pobreza do Mississipp­i rural a uma fortuna avaliada pela Forbes em 2,8 mil milhões de dólares – Oprah é um ícone para os afro-americanos e não falta quem veja nela uma herdeira de MLK.

Mas a herança de Luther King não tem que ver com a cor da pele. E se Bill Clinton – descrito pela escritora Toni Morrison como o “primeiro presidente negro dos EUA” – chegou a ser visto como representa­nte dos valores do ativista, mais recentemen­te apoiantes de Bernie Sanders apontaram o senador do Vermont, que disputou com Hillary Clinton as primárias democratas de 2016, como um herdeiro de Luther King. Em jovem, Sanders participou na Marcha de Washington e muitos veem nas suas propostas para a economia e no seu apelo à igualdade racial semelhança­s com MLK.

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Diante de centenas de milhares de pessoas reunidas em Washington numa marcha pelos empregos e pela liberdade (o nome oficial da que ficou conhecida apenas como a Marcha de Washington), Martin Luther King pronunciou, a 28 de agosto de 1963, o seu famoso...

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