Ruínas que falam
A lição de Roma é a de que quanto mais complexa uma civilização se torna mais brutal é o risco de os erros de gestão política conduzirem a uma queda sem retorno
Nesta Páscoa realizei um projeto antigo. Visitei Mérida, a cidade da Extremadura espanhola onde o Império Romano fundou em 25 a.C. com legionários desmobilizados a capital da província Lusitânia. Em Espanha, a Páscoa celebra-se com uma intensidade ímpar na Europa. O entusiasmo de milhares de pessoas, de todas as idades e condições, usando as ruas como palco da competição religiosa entre confrarias transportando pesadíssimos andores com cenas da Paixão de Cristo ocorre como se não tivesse havido em todo o século XIX o grande debate filosófico, teológico e literário sobre a “morte de Deus”, e como se o mundo contemporâneo não habitasse, com naturalidade, o tempo dos “ídolos”, denunciado por Nietzsche como a alma do niilismo europeu. Ao contemplar essa singular mistura de sagrado e profano, lembrei-me de Emil Cioran. Para esse escritor romeno de língua francesa, a cultura espanhola e a música de Bach constituíam as únicas resistências ao seu ateísmo…Mas o sacrifício da Paixão não se esgota na esfera religiosa. A imprensa espanhola reflete hoje uma sociedade dilacerada e saturada pela questão catalã. A detenção de Puigdemont numa prisão alemã à espera de extradição para Madrid é comentada em registos diversos, mas nunca com simpatia. O líder catalão é acusado por não se encontrar à altura da tradição sacrificial do independentismo catalão, por querer ser herói sem abandonar as pantufas. A análise política cede lugar à caricatura. Mas a verdade é que foram os catalanistas os primeiros a esquecer que a mudança política implica sempre uma avaliação prudente da relação de forças. O avanço para a independência unilateral equivocou-se na medida dos equilíbrios internos de Espanha, mas ainda mais na leitura da pai- sagem europeia. A Europa de hoje não é da primavera dos povos do programa do presidente Wilson, em 1918, mas a do Projeto de Paz Perpétua do Abbé de Saint Pierre, que prometia aos soberanos em exercício a perpétua segurança das fronteiras, precisamente nesse ano de 1713 em que a Catalunha viu outra vez afogado em sangue o seu anseio de independência.
Em Mérida é impossível não ficar tocado pelas ruínas monumentais do gigantesco circo romano, que nos transporta para as corridas de quadrigas replicadas com o fulgor de Hollywood no filme Ben-Hur, ou pela vastidão do anfiteatro, onde milhares assistiam aos combates entre gladiadores, ou ainda o imponente teatro que serve ainda hoje de palco a um festival anual de drama clássico. Essas ruínas são testemunhas de uma civilização com uma marca inconfundível, que se espalhou por uma área muito mais vasta do que a da UE (6,5 milhões de km2 contra 4,4 milhões). Apenas com as energias renováveis, incluindo o esforço de milhões de escravos que eram a base da economia imperial, o génio de Roma atingiu níveis de sofisticação tecnológica e de conforto material e cultural, incluindo a produção de edifícios e utensílios padronizados de grande qualidade, sem paralelo na longa pobreza medieval posterior. A lição de Roma é a de que quanto mais complexa uma civilização se torna mais brutal é o risco de os erros de gestão política conduzirem a uma queda sem retorno. Ao contrário do mito neorromântico de uma transição suave do Império para o tribalismo medieval, defendida por alguns historiadores atuais, Roma colapsou de facto com estrondo, desaguando numa duradoura era de miséria e declive demográfico. Por isso, hoje, numa Europa infinitamente mais complexa e vulnerável, importa que as vozes da catástrofe romana não sejam silenciadas.