Escada acima, escada abaixo
1 Tem vindo a ser notícia a decisão do Metropolitano de Lisboa de interromper a linha amarela no Campo Grande e fazer uma linha circular, combinando a atual linha verde com o que restar da linha amarela e prolongando esta até ao Cais do Sodré via Estrela e Santos. A crítica principal a esta decisão vem dos utentes e dos responsáveis pelos municípios de Odivelas e Loures, que assim se vêm privados de uma ligação direta aos principais polos geradores de emprego nos serviços da cidade, das Avenidas Novas ao Marquês. Uma outra crítica salienta o abandono da expansão da rede para a zona oeste da cidade, até Alcântara, prevista através do prolongamento da via amarela, zona que ficaria assim definitivamente afastada do serviço do metro. 2 Descontinuar ou abandonar as ligações diretas do metro à periferia e apostar tudo numa linha circular exprime escolhas questionáveis sobre o ordenamento do espaço urbano de Lisboa. Representa, em primeiro lugar, um fechamento sobre a cidade reduzida à sua zona central, municipal, em detrimento da estruturação do conjunto do espaço metropolitano, intermunicipal. Um metro sem ligações diretas às zonas periféricas da cidade metropolitana dificilmente assegurará um papel dissuasor do uso do carro individual como meio de transporte predominante nas deslocações diárias casa-emprego. Representa, em segundo lugar, uma aposta no desenvolvimento do turismo feita à custa da comodidade diária de quem trabalha na área metropolitana. Já há quem chame à linha circular o “carrossel dos turistas”. 3 Sem a área metropolitana em que se insere, Lisboa seria, hoje, uma cidade média com cerca de meio milhão de habitantes, em recessão populacional desde os anos 1960, quando tinha mais de 800 mil residentes. Sem Odivelas, Loures, Amadora e outros municípios, seria uma cidade sem a escala e a diversidade sociocultural necessárias para ganhar um estatuto minimamente cosmopolita. Lisboa precisa da sua área metropolitana para se afirmar no espaço europeu, para contrariar o seu envelhecimento e aburguesamento acentuados. Fechada sobre si própria, Lisboa acabará como uma pequena cidade de reformados e turistas. 4 Se Lisboa só faz sentido como parte de uma área metropolitana mais vasta, as decisões-chave para o seu desenvolvimento deveriam considerar sempre como objeto de intervenção esse espaço metropolitano, não o mero território municipal. Se isso é muitas vezes difícil por causa do quadro municipal do essencial das decisões de planeamento urbano, é no entanto possível e obrigatório quando o decisor é uma empresa pública controlada pelo Estado central. Não se percebe, portanto, a decisão agora anunciada de, em tempo de vacas magras, investir numa linha circular de âmbito intramunicipal em detrimento da expansão metropolitana da rede e ou do investimento em novas carruagens para reduzir o tempo entre composições. 5 Sendo de uma eficiência sem igual no transporte urbano pesado de passageiros, o metro não é, porém, o mais agradável dos ambientes urbanos, sobretudo quando usado diariamente. No seu romance A Máquina do Tempo, H.G. Wells coloca o viajante no tempo a interrogar-se sobre a origem dos morlocks, misteriosos descendentes dos humanos que viveriam em subterrâneos. O viajante presume que seriam as classes trabalhadoras do futuro, confinadas a uma vida sem luz, pois, como se sabe, argumenta, “há uma tendência bastante clara para utilizar o espaço subterrâneo para os objetivos menos ornamentais da civilização; há o caminho-de-ferro metropolitano de Londres, por exemplo”. Ocorre-me este romance porque me parece que a decisão da linha circular não ponderou o prolongamento da desigualdade manifesta no uso diário do metro dificultando ainda mais a vida diária dos seus utilizadores oriundos dos concelhos vizinhos de Lisboa, obrigados a mais ligações ao ritmo de escada acima, escada abaixo. 6 Escada acima, escada abaixo foi já a sorte dos residentes na linha do Estoril que, depois de desligado o Y que unia as atuais linhas amarela e azul, passaram a ter de fazer duas mudanças para chegar às Avenidas Novas, o destino de muitos dos que desembarcam diariamente na estação do Cais do Sodré. Quando, em 1995, se fizeram ouvir os protestos pela solução dada à desconexão do Y da Rotunda, respondeu-se que se tratava de incómodo provisório. O plano era, na altura, prolongar a linha amarela do Rato a Alcântara, primeiro passo de uma eventual expansão para oeste, e intercetar aí a linha do Estoril. A ligação de Alcântara às Avenidas Novas passaria então a ser direta. Com a decisão de investir na linha circular, este plano evaporou-se. Como em muitos outros casos em Portugal, não se percebe a falta de estabilidade dos projetos de infraestruturas com ciclos longos de execução. Porquê abandonar de um dia para o outro soluções que estiveram estabilizadas durante décadas e apostar tudo numa escolha ditada pelo curto prazo que compromete, seriamente, o futuro desenvolvimento de um serviço de metro de âmbito metropolitano com um mínimo de conforto?