BEN HARPER & CHARLIE MUSSELWHITE NUM ÁLBUM IMPERDÍVEL
No Mercy in This Land é o álbum assinado a meias por um par que se reencontra: Ben Harper e Charlie Musselwhite regressam ao fim de cinco anos, quando lançaramGet Up!, em claro desafio ao establishment
Numa época em que o universo das canções parece reduzido, pelo menos nos canais televisivos generalistas da produção pop (MTV,VH1 e por aí fora), a um gigantesco e interminável loop, com cada tema exibido e ouvido a parecer uma sequência do antecessor e uma passagem para o seguinte, ainda há espaço para a brisa, para o perfume do orgânico, para um disco que pode tornar-se moda por se colocar voluntária, sábia e talentosamente fora dos padrões correntes. Esse álbum mostra, ainda por cima, um título capaz de nos fazer parar, pensar e aderir – No Mercy in This Land. Vem assinado a meias por um par que se reencontra: Ben Harper e Charlie Musselwhite, representantes de valores e atitudes que ainda significam alguma coisa e contrastam com essa esmagadora amálgama de cópias e encostos estéticos com que nos deparamos na produção contemporânea que vai alcançando o estatuto de power play e conseguindo uma cansativa alta rotação nas estações de rádio. Melhor ainda, se pensarmos que tudo começa no indesmentível prazer que Harper e Musselwhite demonstram nesta reunião, um sucedâneo à altura do que candidamente apresentaram há cinco anos, quando lançaram, em claro desafio ao establishment, o álbum Get Up!.
Para que não fiquem dúvidas, previnam-se os incautos: este volta a ser um registo em que a escola dominante é a dos blues, embora não se verifiquem preconceitos contra incursões nos terrenos da soul e do gospel. Nada que surpreenda aqueles que, de forma mais continuada ou em sistema de toca-e-foge, tenham tido contacto com os capítulos anteriores dos dois protagonistas – a que se juntam mais três músicos, um guitarrista, um baixista que ocasionalmente vai até ao piano, e um baterista. Sejamos claros: Charlie Musselwhite – muito justamente considerado um dos eleitos brancos do blues, a par de Paul Butterfield, Mike Bloomfield e John Mayall, além dos míticos Canned Heat – já tinha discos gravados quando Ben Harper nasceu.
No papel, são 25 os anos que os separam – Charlie já festejou o 74.º aniversário, Ben vai nos 48 de vida. Ambos começaram a gravar bastante novos e, desde a primeira hora, deram a entender ao que vinham, ambos mais interessados no aprofundamento e na consistência dos respetivos desempenhos do que em assumirem-se como ícones de uma qualquer fórmula sazonal. Musselwhite sempre se recusou ao compromisso, preferindo ser trolha e empregado de balcão a sacrificar a sua integridade. Com a explosão do blues, na segunda metade da década de 1960, acabou por ser descoberto como virtuoso da harmónica, tocando com lendas como Muddy Waters, John Lee Hooker (que foi seu padrinho de casamento) ou B.B. King, abrilhantando discos de Tom Waits, de Bonnie Raitt ou dos INXS, mas nunca desistindo da sua própria banda.
Harper, por seu lado, também mostrou desde os primeiros registos – estreou-se há duas dúzias de anos com Welcome to the Cruel
World, o que pressupõe agora um qualquer fecho de ciclo – que não iria afastar-se da música de raiz, da folk à soul, passando pelos blues e pelo gospel, evitando sempre as armadilhas do efémero, mesmo quando chegou a ser uma das jovens esperanças da pop, em sentido lato. Todos recordamos as suas sucessivas rondas por Portugal, em concertos sempre cheios de fiéis. Manteve a sua linha, direita, apesar de nem sempre ser reta, porque os discos iam mudando – mas não cedendo. Descobriu o prazer dos álbuns partilhados, com os Blind Boys of Alabama e depois com Musselwhite, dinamizando bandas diferentes, como os Innocent Criminals ou Relentless 7, consoante os apetites de ocasião.
Os novos hinos Na sequência de Get Up!, Harper e Musselwhite conquistaram – com alguma naturalidade – o Grammy para o melhor disco de blues. Em boa verdade, não espantará ninguém que a próxima reunião de distribuição de prémios venha a conhecer um desfecho semelhante, tal é a pujança deste No Mercy in This Land. Que, sendo um trabalho repartido (para deixar brilhar a harmónica de Musselwhite, sempre a sublinhar os caminhos da voz e das guitarras, acústica, elétrica e steel, de Harper), não aparece dividido ao meio: se ao veterano branco cabem os últimos retoques, uma espécie de “decoração de interiores” capaz de dar alma e cor a cada compartimento, cabem a Harper (seis vezes sozinho, quatro com apaniguados) as dez autorias, que equivalem à arquitetura do álbum. No mínimo, mantêm a inspiração, que não parece querer afastar-se deste moço, capaz de dar novos mundos a um mundo em que se julgava que tudo já estava escrito e dito.
O domínio temático do álbum mora nas relações a dois e nas vicissitudes que enfrentam. Mas não faltam outras digressões. Por exemplo, pelo mundo dos excessos que vão permitindo a quem os perfilha a ilusão de escapar aos problemas. Ou os retratos/manifestos sobre a forma como hoje nos relacionamos com os nossos vizinhos, em sociedade. São boas histórias, enredos simples mas tocantes, que servem de suporte a uma instrumentação que sublinha sem estrangular, que vinca sem sobrecarregar, que embala sem asfixiar. Tudo respira, tudo gera espaço para uma música que, insiste-se, é orgânica, contracorrente, de resistência ao manual adotado para esta estação (ou para qualquer outra).
Em todos os tempos, do rápido à balada blues, gera quatro clássicos imediatos, que poderemos ouvir sem erosão daqui a 20 anos: Love and Trust, When Love Is not Enough, The Bottle Wins Again e o tema-título, que, qual cereja sobre o bolo, ainda junta as vozes distintas mas complementares dos dois heróis deste filme. Sabe-nos bem quando os consagrados – Rolling Stones, Eric Clapton – batem à porta dos blues. Mas melhor ainda é quando a tradição consegue mostrar-nos a novidade que há no eterno. Como é o caso.
Do rápido à balada blues, o álbum gera quatro clássicos imediatos, que poderemos ouvir sem erosão daqui a 20 anos