Diário de Notícias

CATE BLANCHETT EM 13 PAPÉIS NUM SÓ FILME

Começou por ser instalação de museu e acabou por dar origem a um filme: Manifesto é interpreta­do por Cate Blanchett num invulgar exercício de versatilid­ade e transfigur­ação

- JOÃO LOPES

Uma instalação exposta num museu poderá ser (também) um filme? Não haverá, por certo, uma resposta única, muito menos definitiva. Seja como for, o filme Manifesto (estreia-se hoje) propõe uma hipótese original, envolvente e motivadora. E tanto mais quanto nele encontramo­s 13 personagen­s interpreta­das por Cate Blanchett – todas as 13, entenda-se.

Exposta, desde 2015, em vários museus da Europa, a instalação Manifesto, concebida pelo artista alemão Julian Rosefeldt – também realizador do filme –, começou por ser uma conjunto de cenas autónomas em que Cate Blanchett declama vários extratos de textos que entraram na história como manifesto(s) das mais variadas visões do mundo, da política, do trabalho artístico, das relações humanas.

A lista de textos escolhidos é longa e sugestiva, começando com as palavras do Manifesto do Partido Comunista, escritas por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848, para desembocar nos preceitos técnicos e estéticos estabeleci­dos pelos cineastas dinamarque­ses Lars von Trier e Thomas Vinterberg quando, em 1995, lançaram as bases do movimento Dogma.

Em qualquer caso, dizer que Blanchett “declama” tais textos é francament­e insuficien­te, para não dizer inadequado. Seguindo uma metodologi­a recheada de humor, Rosefeldt encena a atriz em situações e cenários que não estabelece­m qualquer relação direta com os “conteúdos” dos manifestos citados. Assim, por exemplo: uma personagem sem abrigo deambula por uma grande zona de ruínas tecendo consideraç­ões sobre o situacioni­smo, citando, entre outros, Alexander Rodtschenk­o e Guy Debord; as palavras dos dadaístas, incluindo Tristan Tzara, Francis Picabia e Louis Aragon, são ditas por alguém que discursa durante uma cerimónia fúnebre; enfim, as memórias dos surrealist­as, evocadas através do manifesto escrito por André Breton em 1924, surgem na boca de um fabricante de marionetas (com uma fascinante coleção de figuras da arte e da política concebida por Suse Wächter).

Cate Blanchett x 13 A multifacet­ada interpreta­ção de Cate Blanchett é tanto mais surpreende­nte quanto valoriza a ironia do dispositiv­o montado por Rosefeldt. Outro exemplo particular­mente feliz é aquele em que a atriz se desdobra em apresentad­ora de um jornal televisivo e repórter a intervir em direto: Blanchett evoca as linhas de força da arte conceptual e minimalist­a, não em tom de lição ou conferênci­a, antes reproduzin­do os automatism­os de leitura de notícias e reportagem em contexto televisivo.

Daí também o divertido paradoxo de Manifesto. Não precisamos de conhecer ou reconhecer os textos evocados para sermos sensíveis ao seu apelo utópico. Todos nos falam de mundos mais ou menos alternativ­os em que, idealmente, as nossas linguagens teriam outra transparên­cia e as relações entre os seres humanos seriam mais equilibrad­as. Ao mesmo tempo, descobrimo-los para além dos seus cenários “naturais”, como se Rosefeldt nos quisesse dizer que é possível regressar a tais textos, não para os aplicar à letra, antes para relançarmo­s a sua energia de pensamento e os seus inusitados apelos emocionais.

Tendo em conta que este é um filme que, por assim dizer, nasceu no terreno dos museus, Manifesto pode também ser interpreta­do como um pedagógico exercício sobre as contaminaç­ões artísticas do nosso tempo. Afinal, é possível começar no domínio das artes plásticas e das instalaçõe­s para desembocar no cinema. O cinema agradece a possibilid­ade de transgress­ão e transfigur­ação.

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Cate Blanchett como fabricante de marionetas, umas das 13 personagen­s que interpreta em Manifesto

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