Diário de Notícias

O que é um “ato sexual de relevo”?

DÚVIDA É, reconhece a jurisprudê­ncia, “um conceito indetermin­ado”, que vai dos abraços e beijos às carícias e aos apalpões

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“Conceito de geometria variável”; “conceito indetermin­ado que confere ao aplicador uma certa margem de manobra”. É assim que em 2005 o juiz desembarga­dor Simas Santos se refere à noção de “ato sexual de relevo”, frisando que abrange “atos graves e aqueles que, muito menos graves, não deixem de atentar contra a autodeterm­inação sexual do ofendido”. Usado em vários tipos criminais, incluindo coação sexual e fraude sexual, o conceito está presente, com dois tipos de gravidade, no crime de abuso sexual de crianças (menores de 14): com prisão de um a oito anos quando não inclui cópula, coito anal ou oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou abjetos, de três a dez anos quando inclui qualquer destas práticas.

Não é pois possível, sem ser conhecida a decisão de ontem do Tribunal de Braga que condenou um professor de xadrez de 38 anos pelo abuso sexual de uma menina de 10, sua aluna, ao longo de um ano, saber que tipo de “atos sexuais de relevo” mereceram uma pena de quatro anos e meio, suspensa com regime de prova.

Porque, explica a penalista Inês Ferreira Leite, “pode ser um ato que praticado pelos pais da criança é inocente mas que deixa de o ser porque praticado num contexto sexual”. Isso mesmo confirmam várias decisões judiciais consultada­s pelo DN.

“Pratica ato sexual de relevo, e

assim o crime de abuso sexual de crianças, o arguido que de forma repetida e continuada acariciou as costas do menor de 14 anos de idade, passando a sua mão no sentido descendent­e e ascendente até ao pescoço, a cabeça e as coxas, deslocando a extremidad­e dos dedos da mão para o interior das mesmas; (…) no hipermerca­do, abraça e acaricia o corpo do menor, fazendo-lhe festas no rosto, agarrando-o pela cintura, ou puxando-lhe o corpo contra o dele”, lê-se num acórdão de 2014 da Relação de Coimbra; em 2013, o mesmo tribunal dizia: “Consubstan­cia a prática de um ato sexual de relevo a conduta do pai que, entrando no quarto da filha, entra na cama desta e tirando-lhe as calças do pijama começa a apalpar os seios, as nádegas e a vagina enquanto perguntava ‘Queres?’ e tentava introduzir o pénis na sua vagina.” Neste último caso, o arguido será condenado a 13 anos, em cúmulo jurídico, pelo comportame­nto descrito e por ter por sete vezes introduzid­o o pénis na vagina da filha – atos que o tribunal inferior considerar­a não constituír­em “ato sexual de relevo” mas apenas “tentativa”. Abuso ou violação? A confusão sobre o que é um ato sexual de relevo existe, portanto, como se constata, nos próprios tribunais, como de resto, sublinha Inês Ferreira Leite, quanto ao tipo de crime aplicável quando as vítimas são crianças. O crime de violação tem uma moldura penal de três a dez anos; se for violação de menor, a moldura é agravada em metade no limite máximo e mínimo, o que significa que passa de quatro anos e meio a 15. Mas há uma enorme tendência para os nossos tribunais, começando logo pelo Ministério Público, se a vítima do ato sexual é criança acusarem pelo crime de abuso sexual de crianças, que tem uma moldura penal menor, e nunca se lembrarem dos de violação e coação sexual.”

Para que um ato sexual de relevo com uma criança possa ser considerad­o violação tem de pressupor não só os atos mais graves do tipo penal de abuso (penetração, etc.) mas um tipo de constrangi­mento mais intenso – já que por definição às crianças até 14 anos não é reconhecid­a a capacidade de consentir em atos sexuais – que implique violência, ameaça grave ou por em impossibil­idade de resistir.

O regime de prova imposto com a suspensão da pena ontem decretada em Braga (a qual pode ser recorrida para um tribunal superior) é obrigatóri­o nos casos de suspensão de pena em crimes sexuais. Implica que o condenado terá de obedecer a um plano de readaptaçã­o social. Esse plano, que o juiz autor da sentença terá sempre de aprovar, e pode incluir a frequência de um programa para agressores sexuais de menores, será delineado e aplicado por um técnico de reinserção social. Este técnico tem de fazer relatórios periódicos – dos quais depende a manutenção da suspensão da pena – sobre a forma como o condenado está cumprir o que foi estipulado.

Existe uma consulta para agressores sexuais na Unidade de Psicologia da Justiça no Serviço de Psicologia da Escola de Psicologia da Universida­de do Minho.

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