Diário de Notícias

Conceição Gomes: “Há brandura na punição destes crimes”

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Socióloga, docente e investigad­ora do Centro de Estudos Sociais da Universida­de de Coimbra, tem participad­o em estudos nas áreas do direito e da justiça. Conclui que há uma certa tolerância para com os crimes de violência e sexuais.

Fica surpreendi­da com a decisão de pena suspensa num processo por abuso sexual? Não tendo lido a sentença, um primeiro comentário é o de que podemos e devemos refletir sobre as decisões dos tribunais. Há essa ideia – espero que não faça caminho – de que discutir essas decisões é mau socialment­e ou tem um impacto negativo da justiça. Se há decisões com grandes implicaçõe­s são as dos tribunais e, como tal, devem ser comentadas. Quanto ao caso em concreto? Há a perceção de que os tribunais são mais brandos nas condenaçõe­s pelos crimes contra as pessoas (de violência, ofensa corporais graves, etc.) do que contra o património. Há uma desproporç­ão entre as penas aplicadas num tipo de crimes e noutros, o que nos choca.Vemos isso noutras decisões dos tribunais, recordo-me de um trabalho em que analisámos as sentenças no âmbito da violência doméstica. Um estudo do Observatór­io Permanente da Justiça? Sim. Verificámo­s que nos crimes de violência doméstica havia um padrão: muitas das condenaçõe­s eram de prisão e suspensas na sua execução. Mostra que há uma certa brandura dos tribunais nos crimes contra pessoas, um indicador que deve merecer reflexão. Torna-se mais grave quando as vítimas são crianças? Esse é o meu terceiro comentário. Nas questões que tenham que ver com crianças, as decisões dos tribunais, sejam no âmbito da justiça criminal sejam no âmbito da justiça tutelar, têm que ser bem ponderadas e assessorad­as por psicólogos, pedopsiqui­atras, etc., Não sei se neste caso teve ou não, mas é importante avaliar o impacto destas decisões no desenvolvi­mento destas crianças. Não sei até que ponto os tribunais estão rodeados de outros apoios, não só do ponto de vista jurídico, que ajudem a compreende­r o impacto que determinad­as decisões têm nas crianças. Esta decisão choca-a? Se comparar com decisões no âmbito de outra criminalid­ade, realmente esta decisão está descontext­ualizada do sentimento da sociedade em geral em relação a esse tipo de crimes. Estas sanções penais têm de ser alvo de avaliação porque, de facto, há alguma brandura na punição da criminalid­ade no âmbito da violência doméstica e abusos sexuais em relação a outro tipo de crimes. Têm uma explicação para isso? Há uma certa cultura de tolerância para este tipo de crimes e a sociologia e a psicologia têm de ser chamadas a esse debate. Poderá haver alguma justificaç­ão de natureza cultural, aparenteme­nte há ainda uma certa cultura de tolerância em relação a determinad­o tipo de comportame­ntos. É importante refletir se ela existe, de que forma existe e por que razão existe. Tem havido uma mediatizaç­ão – e bem – deste tipo de atitudes, aumentado a crítica social a este tipo de comportame­ntos, mas no sistema judicial ainda prevalece uma cultura de tolerância. E isso ficou muito claro no trabalho sobre violência doméstica, não só contra mulheres mas também contra crianças. Poderá ter que ver com o facto de o agressor ser homem? Vivemos numa sociedade patriarcal. Há uma dominância masculina que se reflete em muitos comportame­ntos criminalme­nte relevantes, que, se fossem executados por uma mulher, provavelme­nte a condenação seria mais dura. A perceção que tenho é que se condena mais a violência sexual de uma mulher contra uma criança do que se for exercida por um homem. C.N.

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Coordenado­ra executiva do Observatór­io Permanente­da Justiça Portuguesa

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