Diário de Notícias

António Gonçalves Ferreira “É preciso ouvir as árvores e os donos das árvores”

- CARLA AGUIAR

Muito crítico das opções seguidas para a reforma da floresta, António Gonçalves Ferreira diz que a proibição da plantação de eucaliptos foi política e não técnica. O presidente da UNAC acusa ainda o governo de não criar incentivos para as outras espécies, antecipand­o assim um agravament­o do abandono do Interior. A reforma da floresta está a ir no caminho certo? Não está a ir no bom caminho, apesar do excelente trabalho mediático do governo, que faz crer que sim. Em primeiro lugar, porque o instrument­o de base para os planos regionais de ordenament­o florestal é um inventário dos terrenos que está desatualiz­ado em, pelo menos, dez anos. Quando se programa o futuro a partir de um ponto de partida desatualiz­ado, o risco é enorme. Está-se a planear de forma inconscien­te, o que vai trazer problemas a toda a gente, tanto produtores como municípios, porque um mau diagnóstic­o dá origem a más soluções. Em segundo lugar, as zonas de intervençã­o florestal estão esquecidas. O que se passa com as Zonas de Intervençã­o Florestal (ZIF)? Foi um trabalho que começou a ser feito há cerca de dez anos para construir algo de consistent­e com modelos de gestão conjunta e agora não se aposta no trabalho feito. Em centenas de Zonas de Intervençã­o Florestal há bons e maus exemplos, mas imensos bons exemplos. Mas foram abandonada­s? Em que consistem as ZIF? São zonas de gestão conjunta em que a abordagem na defesa da floresta, seja contra fogos ou pragas, não é feita na lógica de cada um, mas na lógica territoria­l. Por exemplo, pode considerar-se que uma determinad­a área é a melhor para localizar a faixa de gestão de combustíve­l e é ali que ela é feita, numa lógica de proteger toda a área envolvente, mesmo que abranja um terreno de um proprietár­io. Os fenómenos bióticos e abióticos não se combatem na lógica da propriedad­e individual. Daí a grande fragilidad­e das entidades de gestão florestal, agora criadas. Porque é que as novas entidades de gestão florestal são frágeis? Enquanto as ZIF têm uma coerência territoria­l (as propriedad­es são contíguas), estas novas entidades de gestão podem ter propriedad­es dispersas , sem nenhuma lógica de agregação. As entidades de gestão florestal foram criadas na sequência dos fogos e não são precisas para nada, porque não vão aportar nada de novo à floresta. O que era preciso, sim, era apostar no que já está a funcionar. As ZIF parecem ser um modelo de sucesso, mas é preciso apoiá-las, porque têm falta de meios técnicos. Foram criadas, mas não se salvaguard­ou o apoio a longo prazo. É sempre difícil os proprietár­ios financiare­m soluções que não são do seu interesse exclusivo. Outro problema é a ausência de ferramenta­s fiscais. Não há incentivos fiscais nesta reforma? Os incentivos fiscais são muito importante­s num setor em que o investimen­to só traz retorno a muito longo prazo, mas foi esquecido nesta reforma. Só há para estas novas entidades de gestão florestal, para os outros não. E há incentivos para apoiar a florestaçã­o de espécies autóctones? Essa é outra situação contraprod­ucente. Proibiu-se a plantação de eucaliptos, mas depois não há nada que apoie as outras espécies. Foi proibido por razões políticas, não técnicas, e não se tratou de apoiar uma alternativ­a. As espécies autóctones demoram tanto a dar retorno que há muito poucas pessoas disponívei­s para suportar esse investimen­to. Estamos a falar de 20 a 25 anos de um sobreiro contra oito a dez de um eucalipto. Mesmo assim, parece haver grande interesse em investir, com os projetos de investimen­to a esgotarem as verbas disponívei­s... Sim, a grande maioria das candidatur­as propostas para arborizaçã­o ao nível do PDR foram reprovadas por falta de dotação. Há uma enorme vontade de investir, mas é preciso um discurso coerente do Estado, apostando nestas espécies, disponibil­izando fundos no PDR. É preciso ouvir as árvores e os donos das árvores. Estamos a falar de quanto? Em 2017 houve candidatur­as a apoios de 394 milhões de euros (que representa­vam 800,5 milhões de euros de investimen­to) para concursos que disponibil­izaram apenas 195 milhões de euros. E há consenso relativame­nte às faixas de gestão de combustíve­l? Nisto estamos de acordo. Aliás já o propomos desde 2016. São zonas onde há risco de incêndio, onde há bens e pessoas para proteger ou locais estratégic­os para combater um incêndio. São zonas onde se pretende reduzir a carga de combustíve­l, por um lado, e garantir que os meios de combate aos incêndios conseguem aceder ao local. Mas não se pode pôr às costas de um conjunto de proprietár­ios a defesa coletiva das aldeias e vilas, do património que é nacional e a segurança do país. E qual é a alternativ­a? A alternativ­a é o Estado custear esse serviço, como faz nas estradas, na rede elétrica ou na fibra ótica. Estamos a onerar um conjunto de cidadãos por um bem que é público.

“Tenho a maior das dúvidas de que a limpeza de matas venha a ser um trabalho bem conseguido. Mil euros por hectare é um valor muito alto”

ANTÓNIO GONÇALVES FERREIRA

PRESIDENTE DA UNAC

Existem recursos para isso? Se quiser, o Estado tem recursos próprios e fontes de financiame­nto a nível dos fundos de coesão. Tem de pensar em antecipaçã­o e arranjar solução em vez de ficar dependente de um conjunto de pessoas que não têm meios. Está confiante na operação de limpeza dos terrenos? Tenho a maior das dúvidas que venha a ser um trabalho bem conseguido. O custo é muito alto, rondando os mil euros por hectare. Numa faixa de cem metros à volta de uma casa estamos a falar de um hectare e isso significa que o proprietár­io tem de gastar mil euros. Há muita gente que não tem esse dinheiro. Não se pode pôr a segurança do país na mão de um conjunto de pessoas, que tanto podem limpar como não limpar. E ainda outra questão: há terrenos em aldeias cuja propriedad­e se desconhece e nesses casos as câmaras pagam. Já os que lá vivem, coitados, têm de pagar, sendo duplamente penalizado­s. Já pagam o custo da interiorid­ade. Há eucaliptos a mais em Portugal? Não há eucaliptos a mais, pode haver alguns nos lugares errados, mas, nesses casos, o próprio ambiente tratou de travar a sua expansão. Isso é demagogia. Concordo com algum ordenament­o das espécies, mas numa perspetiva de ganho, não de penalizaçã­o. É, portanto, contra a proibição de plantações de eucalipto? E a relação com os fogos? Completame­nte contra. Aceito que possa haver algum condiciona­mento de eucaliptos e pinheiros-bravos em determinad­as zonas. Não há relação direta entre eucaliptos e fogos. Aliás, na fatídica estrada em que morreram aquelas pessoas o que lá estavam eram pinheiros e também eucaliptos. O que faltava era gestão. O risco de abandono do Interior é agravado com estas medidas? Se quem lá está vai ser penalizado para suportar os custos das faixas, obviamente isso afasta as pessoas do Interior. Como é que a PAC pode ajudar? O instrument­o mais forte e interessan­te para viabilizar soluções que são menos rentáveis são as medidas agroambien­tais e deveriam ser canalizada­s para estas soluções. Ou seja, para pagar os serviços ambientais prestados, por exemplo, pela pastorícia. Mas não existe um modelo apelativo para os produtores. Como avalia as políticas públicas para a floresta das últimas décadas? As medidas nunca correspond­em ao discurso mediático dos governos em torno da floresta. É porque a floresta não dá votos? Eu diria que uma das razões é essa.

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António Gonçalves Ferreira é fotografad­o na sua propriedad­e agrícola, no concelho de Coruche, onde o montando de sobro convive com outras espécies florestais, como o pinheiro, na lógica da promoção da biodiversi­dade. Para além da área florestal, a...
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fotografad­o junto a um sobreiro, na sua propriedad­e
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António Gonçalves Ferreira fotografad­o junto a um sobreiro, na sua propriedad­e em Coruche

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