O cinema entre amigos que era feito para o mundo
Estreia-se hoje Cinema Novo, de Eryk Rocha, que homenageia esse movimento brasileiro e os seus protagonistas
O título não engana, e diz ao que vem: Cinema Novo é sobre esse movimento cinematográfico brasileiro, que nos anos 1960-70 trocou os estúdios pelas ruas, à procura dos contrastes da realidade quotidiana de um país. Filho de Glauber Rocha (1939-1981), cineasta de Terra em Transe (1967) e António das Mortes (1969) – por sinal, um dos nomes mais influentes do dito movimento –, Eryk Rocha propõe aqui um olhar que, ao invés de servir objetivos pedagógicos, se volta para a própria estética militante dos filmes revisitados.
Com montagem abrupta e enérgica, que começa com um conjunto de planos de gente a correr, o realizador atira-nos para dentro de uma linguagem feita de imagens – também numa espécie de corrida – que vão construindo a perceção de um cinema culturalmente enraizado, mas essencialmente livre, revolucionário. Falamos de uma dinâmica que nascia nos cafés, nos encontros entre amigos, tal como o movimento homólogo português ou a Nova Vaga francesa (cada um à sua maneira), num ímpeto de redirecionar a câmara para a matéria e especificidades da sociedade brasileira.
Glauber Rocha, naturalmente, mas também Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Carlos Diegues e Leon Hirszman, são apenas alguns dos rostos que vemos aqui em registos de arquivo de grupo, nas suas rodagens ou em entrevistas a falar dos intentos do Cinema Novo. Contudo, mais do que a teoria, o contexto dos tempos e informação detalhada sobre esta turma masculina, Eryk Rocha está interessado na experiência sensorial dos filmes que estes realizadores fizeram nascer, na sua temática e pulsão visual. Veja-se, por exemplo, o plano que ele resgata da atriz Fernanda Montenegro alegremente debaixo de chuva em A Falecida (1965), de Hirszman, fixando-se os seus gestos, a face e os cabelos molhados como um ritual de adoração...
O que melhor define Cinema Novo é assim uma ideia de interpelação dos sentidos, através de uma sucessão de imagens e sons que validam a noção radical e transformadora deste “género” cinematográfico. Manifestações de utopia e aventura, que queriam“mudar o mundo” e que, mesmo não tendo ido tão longe, chegaram à competição de Cannes em 1964, com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.
Assumindo a expressividade arrojada dessas novas formas e representações da época, este é um documentário que abre o apetite a um conhecimento mais aprofundado, ao criar impacto – mesmo num espectador menos esclarecido acerca do Cinema Novo – por via de um imaginário rico e diverso, moldado por um espírito de homenagem. E, efetivamente, Rocha tem uma visão sólida. Uma visão que lhe permite fazer do caos das imagens um corpo vigoroso, com ADN bem definido, e um sóbrio labor afetivo... Eis o cinema dos amigos para o mundo, numa crónica fecunda. INÊS N. LOURENÇO