Incoerência nas políticas de ensino superior e ciência
OMinistério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) apresentou para debate público um pacote legislativo apresentado na sequência do relatório preliminar da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que avaliou os sistemas de ensino superior, ciência, tecnologia e inovação em Portugal. O pacote envolve diversos diplomas.
Numa análise de políticas, importa tanto o que se afirma como o que se omite. E não deixa de ter um evidente significado político que o pacote omita a questão mais sensível da universidade (e institutos politécnicos): a questão da governance dessas instituições, ou mais especificamente, o enorme défice de participação gerado pelo regime jurídico das instituições do ensino superior (RJIES), responsável pela introdução do new public management nas universidades portuguesas, mesmo que com formas híbridas. O RJIES é, em grande medida, responsável pelo escândalo da precarização do trabalho universitário. E responsável pela consolidação de uma cultura centrada no embaratecimento do trabalho dos professores e dos investigadores e na precarização das suas relações laborais. Recentes tomadas de posição do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas sobre o emprego científico e a contratação dos investigadores, prevista em diploma aprovado pela Assembleia da República, atestam como o mainstream universitário se ajustou (e promove) a essa precarização e desqualificação do trabalho docente e de investigação.
Mas não deixa de ser interessante a escolha da OCDE como instância de legitimação das políticas apresentadas, insistentemente presente nas notas introdutórias de quase todos os projetos de diploma apresentados. A OCDE é, reconhecidamente, o principal think tank internacional do projeto neoliberal: na economia, nas relações laborais, mas também na educação. A ironia é que o governo da geringonça, que se afirma de esquerda e adversário confesso das políticas neoliberais, tenha recorrido a essa legitimação (que, obviamente, não é “técnica” mas ideologicamente orientada). A OCDE não é a única organização internacional presente no espaço da “consultoria” internacional. Porque se omite sempre a UNESCO, com um imenso trabalho na educação superior desde há décadas? E porque não a UNESCO, que tem muito trabalho sobre educação superior? Será porque se teme que as recomendações não correspondam ao que se deseja? Para um ministro que se afirma pós-neoliberal (e alguns dos seus mais próximos que estiveram na génese dos diplomas em análise), não está nada mal a companhia assumida!
Os projetos de diploma apresentados acentuam algo muito grave no discurso do atual MCTES: o conhecimento válido é aquele que tem valor de mercado. Todas as prioridades, todas as introduções, todos os discursos, incluindo a nova modalidade de mestrados em empresas, vão neste sentido. A busca de financiamento para a ciência nas áreas do financiamento europeu associado à inovação fomenta e acelera esse discurso dominante. Num concurso recente, o Programa Operacional de uma região só admitia projetos que conduzissem a uma patente!
Mal vai um país que não valoriza o conhecimento crítico, reflexivo, “desinteressado”. O discurso dominante é, em primeiro lugar, penalizador para as ciências sociais, para as artes, para as humanidades, mas também para áreas como as ciências da vida ou as matemáticas. Mas a prazo afeta todas as áreas do conhecimento e da cultura.
Mas alguns dos projetos apresentados revelam uma deficiente qualidade técnica na formulação da decisão política. Ou seja, a apresentação de propostas de mudança legislativa deve estar escorada em estudos de impacto e/ou em avaliações do quadro existente. Manifestamente, não é o caso de, pelo menos, duas controversas propostas.
A primeira refere-se à intenção de ligar a acreditação dos doutoramentos à avaliação dos centros de investigação com Muito Bom ou Excelente. Sem questionar a “bondade” da intenção, existe algum estudo sobre as consequências desta medida em universidades “periféricas” (Algarve, Trás-os-Montes, Évora, Beira Interior, Açores ou Madeira) ou nos institutos politécnicos e nas universidades privadas? E como se processará essa ligação em áreas como Arquitetura ou Direito, com muito poucos centros avaliados? Quantos doutoramentos terão de fechar e como ficará o mapa nacional dessa oferta formativa? E com que autoridade se avança com uma proposta a meio de um processo de avaliação dos centros de investigação? O conhecimento prévio das regras do jogo não é o princípio base de transparência da ação política?
A segunda refere-se à intenção de acabar com os programas doutorais e transformar o doutoramento numa exclusiva apresentação da tese? Existe algum estudo, por exemplo da European Univeristy Association (EUA), que fundamente tal posição? Ou a fundamentação assenta na ideia de que “no meu tempo” era assim? Os programas doutorais são a forma de integrar os estudantes estrangeiros ou nacionais que não são docentes universitários na cultura de investigação. E de formar no plano das epistemologias e metodologias, ausentes nos mestrados pós-Bolonha.
A ideia de que os programas doutorais devem ser substituídos pela integração dos doutorandos em projetos institucionais de I&D só pode ser apresentada por quem desconhece a realidade nacional. Alguém acha isso possível, com uma Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que não consegue divulgar com transparência (e nos prazos que ela própria fixa) os resultados dos concursos? Com uma FCT que não consegue abrir anualmente concursos para projetos de investigação em todos os domínios científicos? Com um subfinanciamento crónico de I&D? Por favor, avaliem-se os programas doutorais existentes e depois discutam-se modelos. E porque tem o Estado (a lei) de impor modelos às universidades?
A construção de políticas de educação e ciência que juntem conhecimento e verdade (os valores tradicionais da universidade moderna), a justiça social tem um longo caminho ainda a percorrer. E essa é também a função dos intelectuais e dos cientistas que partilham esses valores. E não será seguramente numa leitura acrítica, tecnocrática, das agendas da OCDE que haverá políticas que privilegiem a justiça social.
Mal vai um país que não valoriza o conhecimento crítico, reflexivo, “desinteressado”
O discurso dominante é, em primeiro lugar, penalizador para as ciências sociais, para as artes, para as humanidades, mas também para áreas como as ciências da vida ou as matemáticas
Mas a prazo esse discurso afeta todas as áreas do conhecimento e da cultura