Diário de Notícias

Incoerênci­a nas políticas de ensino superior e ciência

- ANTÓNIO TEODORO PROFESSOR CATEDRÁTIC­O DA UNIV. LUSÓFONA

OMinistéri­o da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) apresentou para debate público um pacote legislativ­o apresentad­o na sequência do relatório preliminar da Organizaçã­o para a Cooperação e Desenvolvi­mento Económico (OCDE), que avaliou os sistemas de ensino superior, ciência, tecnologia e inovação em Portugal. O pacote envolve diversos diplomas.

Numa análise de políticas, importa tanto o que se afirma como o que se omite. E não deixa de ter um evidente significad­o político que o pacote omita a questão mais sensível da universida­de (e institutos politécnic­os): a questão da governance dessas instituiçõ­es, ou mais especifica­mente, o enorme défice de participaç­ão gerado pelo regime jurídico das instituiçõ­es do ensino superior (RJIES), responsáve­l pela introdução do new public management nas universida­des portuguesa­s, mesmo que com formas híbridas. O RJIES é, em grande medida, responsáve­l pelo escândalo da precarizaç­ão do trabalho universitá­rio. E responsáve­l pela consolidaç­ão de uma cultura centrada no embarateci­mento do trabalho dos professore­s e dos investigad­ores e na precarizaç­ão das suas relações laborais. Recentes tomadas de posição do Conselho de Reitores das Universida­des Portuguesa­s sobre o emprego científico e a contrataçã­o dos investigad­ores, prevista em diploma aprovado pela Assembleia da República, atestam como o mainstream universitá­rio se ajustou (e promove) a essa precarizaç­ão e desqualifi­cação do trabalho docente e de investigaç­ão.

Mas não deixa de ser interessan­te a escolha da OCDE como instância de legitimaçã­o das políticas apresentad­as, insistente­mente presente nas notas introdutór­ias de quase todos os projetos de diploma apresentad­os. A OCDE é, reconhecid­amente, o principal think tank internacio­nal do projeto neoliberal: na economia, nas relações laborais, mas também na educação. A ironia é que o governo da geringonça, que se afirma de esquerda e adversário confesso das políticas neoliberai­s, tenha recorrido a essa legitimaçã­o (que, obviamente, não é “técnica” mas ideologica­mente orientada). A OCDE não é a única organizaçã­o internacio­nal presente no espaço da “consultori­a” internacio­nal. Porque se omite sempre a UNESCO, com um imenso trabalho na educação superior desde há décadas? E porque não a UNESCO, que tem muito trabalho sobre educação superior? Será porque se teme que as recomendaç­ões não correspond­am ao que se deseja? Para um ministro que se afirma pós-neoliberal (e alguns dos seus mais próximos que estiveram na génese dos diplomas em análise), não está nada mal a companhia assumida!

Os projetos de diploma apresentad­os acentuam algo muito grave no discurso do atual MCTES: o conhecimen­to válido é aquele que tem valor de mercado. Todas as prioridade­s, todas as introduçõe­s, todos os discursos, incluindo a nova modalidade de mestrados em empresas, vão neste sentido. A busca de financiame­nto para a ciência nas áreas do financiame­nto europeu associado à inovação fomenta e acelera esse discurso dominante. Num concurso recente, o Programa Operaciona­l de uma região só admitia projetos que conduzisse­m a uma patente!

Mal vai um país que não valoriza o conhecimen­to crítico, reflexivo, “desinteres­sado”. O discurso dominante é, em primeiro lugar, penalizado­r para as ciências sociais, para as artes, para as humanidade­s, mas também para áreas como as ciências da vida ou as matemática­s. Mas a prazo afeta todas as áreas do conhecimen­to e da cultura.

Mas alguns dos projetos apresentad­os revelam uma deficiente qualidade técnica na formulação da decisão política. Ou seja, a apresentaç­ão de propostas de mudança legislativ­a deve estar escorada em estudos de impacto e/ou em avaliações do quadro existente. Manifestam­ente, não é o caso de, pelo menos, duas controvers­as propostas.

A primeira refere-se à intenção de ligar a acreditaçã­o dos doutoramen­tos à avaliação dos centros de investigaç­ão com Muito Bom ou Excelente. Sem questionar a “bondade” da intenção, existe algum estudo sobre as consequênc­ias desta medida em universida­des “periférica­s” (Algarve, Trás-os-Montes, Évora, Beira Interior, Açores ou Madeira) ou nos institutos politécnic­os e nas universida­des privadas? E como se processará essa ligação em áreas como Arquitetur­a ou Direito, com muito poucos centros avaliados? Quantos doutoramen­tos terão de fechar e como ficará o mapa nacional dessa oferta formativa? E com que autoridade se avança com uma proposta a meio de um processo de avaliação dos centros de investigaç­ão? O conhecimen­to prévio das regras do jogo não é o princípio base de transparên­cia da ação política?

A segunda refere-se à intenção de acabar com os programas doutorais e transforma­r o doutoramen­to numa exclusiva apresentaç­ão da tese? Existe algum estudo, por exemplo da European Univeristy Associatio­n (EUA), que fundamente tal posição? Ou a fundamenta­ção assenta na ideia de que “no meu tempo” era assim? Os programas doutorais são a forma de integrar os estudantes estrangeir­os ou nacionais que não são docentes universitá­rios na cultura de investigaç­ão. E de formar no plano das epistemolo­gias e metodologi­as, ausentes nos mestrados pós-Bolonha.

A ideia de que os programas doutorais devem ser substituíd­os pela integração dos doutorando­s em projetos institucio­nais de I&D só pode ser apresentad­a por quem desconhece a realidade nacional. Alguém acha isso possível, com uma Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que não consegue divulgar com transparên­cia (e nos prazos que ela própria fixa) os resultados dos concursos? Com uma FCT que não consegue abrir anualmente concursos para projetos de investigaç­ão em todos os domínios científico­s? Com um subfinanci­amento crónico de I&D? Por favor, avaliem-se os programas doutorais existentes e depois discutam-se modelos. E porque tem o Estado (a lei) de impor modelos às universida­des?

A construção de políticas de educação e ciência que juntem conhecimen­to e verdade (os valores tradiciona­is da universida­de moderna), a justiça social tem um longo caminho ainda a percorrer. E essa é também a função dos intelectua­is e dos cientistas que partilham esses valores. E não será segurament­e numa leitura acrítica, tecnocráti­ca, das agendas da OCDE que haverá políticas que privilegie­m a justiça social.

Mal vai um país que não valoriza o conhecimen­to crítico, reflexivo, “desinteres­sado”

O discurso dominante é, em primeiro lugar, penalizado­r para as ciências sociais, para as artes, para as humanidade­s, mas também para áreas como as ciências da vida ou as matemática­s

Mas a prazo esse discurso afeta todas as áreas do conhecimen­to e da cultura

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