Boas intenções e conhecidas manhosices
Os argumentos que Ribeiro e Castro aduziu sobre o que aqui se escreveu sobre “engenharias eleitorais” interpelam um regresso ao tema. Ainda que intermediada no tempo e pela forma, a polémica justifica a reincidência. Naturalmente para contestar o que com a contestação se pretendeu sustentar. Não se farão juízos de intenção. Como se diz, ainda que se duvide do acerto da asserção, “de boas intenções está o inferno cheio”. Presumindo que a ordeira disposição entre bem e mal levaria ao arrumo das más na morada do demo e das boas em destino diverso, mesmo assim transportemos para mais terrenas matérias a interlocução. Ribeiro e Castro aproveita o texto para evocar Luís Sá. Saúde-se a evocação. Mas registe-se o facto de não ter adicionado ao evocado a devida invocação.
O autor da opinião aqui contestada remete-nos, vendo aí razões de convencimento, para outros países. Não é no plano do direito comparado nem da revisitação de autores de maior ou menor contemporaneidade – sejam eles Rae, Sartori ou Duverger – que o nosso sistema eleitoral deve ser observado. Exercícios académicos, justificáveis no meio a que se destinam, não são sobreponíveis ao que em concreto molda cada sistema. Ribeiro e Castro não desconhecerá a raiz do sistema português na sua dinâmica constituinte, a distinção entre sistema eleitoral e representação partidária, a consagração de que os deputados representam todo o país e não só o círculo pelo que são eleitos. E sobretudo sabe da impossibilidade de transformar a representação política em reflexo absoluto do país real e que os sistemas eleitorais não são neutros. Originariamente, mesmo com invocáveis imperfeições, privilegiou-se a igualdade de oportunidades e a representatividade dos sistemas. Há quem deseje submetê-las à “estabilidade” e à “governabilidade” ainda que isso ampute dimensão democrática e representatividade. Olhar para o sistema eleitoral do país exige não desmerecer dos princípios que a Constituição quis assegurar: liberdade de propaganda, igualdade de oportunidade e de tratamento das diversas candidaturas ou imparcialidade das entidades públicas. Aos que se manifestam preocupados com o sistema eleitoral talvez encontrassem aqui campo para reflexão. Concluiriam, se a isso se dispusessem, que o voto livremente expresso está submerso num mar de condicionantes: dinâmica mediática; ilegítima pressão de sondagem (aos que põem o pé fora para jogar argumentos a seu favor encontrariam, pondo o pé mais ao lado, países onde estas são proibidas); abuso do aparelho do Estado. Quadro agravado com o esvaziamento da CNE e a transferência de competências para a ERC, um mero depósito de impunes discriminações.
Percorramos outras evidenciadas razões deste afã aperfeiçoativo que por aí arribou. Comecemos pela proporcionalidade. Concedamos como certas as distorções na relação numérica de votos e sua tradução em mandatos, desde logo porque o método de Hondt não é um esmero de proporcionalidade. Mas a distorção encontra conserto. Não na importação de soluções, mas sim noutras paragens: no aumento do número de mandatos (repondo o que já existiu) e na criação de um circulo único. Atente-se aos exemplos da Madeira com a criação de um círculo único que substituiu os onze anteriores em contraste com os Açores onde, apesar da criação de um círculo de compensação aos de ilha, se pode com 90 votos ter um número de mandatos igual a quem obtenha mais de dois mil. Os círculos eleitorais introduzem verdadeiros graus de proporcionalidade mais importantes do que as formas de representação eleitoral conduzindo à sua redução ou mesmo anulação. Assim como a redução do número de mandatos põe em causa a proporcionalidade.
Na sinuosidade das veredas de domínio político que estão para lá da verdejante paisagem eleitoral que serve de móbil, prometem o que sabem não cumprir. Regista-se a profissão de fé de não introdução da cláusula-barreira. Sabem que a Constituição não o permite. Mas a tendência é a da sua criação informal. Quando hoje pelo desenho das circunscrições eleitorais em mais de um terço delas é exigível 25%, ou mais, de votos para obter um mandato, de que estamos a falar? Não vale a pena o esforço de jurar que o que se quer percorrer são as alamedas da proporcionalidade e não os atalhos do sistema maioritário. Os círculos uninominais são parte deste ambicionado percurso. Para lá das intenções, os “uninominais” não são um modelo estático, desenhado em prancheta, isolados da vida e da dinâmica reais: a torrente da distorção mediática com a dupla pressão local e nacional para reproduzir a força dominante, o caciquismo local e a coação económica e social encarregar-se-á de fazer o que se pretende. Se a preocupação é a abstenção, busque-se a sua raiz onde ela germina: na política de direita e na ausência de resposta aos problemas e às aspirações do povo. Não há prova de que os “uninominais” elevem a participação. Como Ribeiro e Castro admite, já vimos “arremetidas manhosas” bastantes para não cair no engodo.
Se a preocupação é a abstenção, busque-se a sua raiz onde ela germina: na política de direita e na ausência de resposta aos problemas e aspirações do povo. Não há prova de que os “uninominais” elevem a participação. Como Ribeiro e Castro admite, já vimos “arremetidas manhosas” bastantes para não cair no engodo