Diário de Notícias

Boas intenções e conhecidas manhosices

- JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP

Os argumentos que Ribeiro e Castro aduziu sobre o que aqui se escreveu sobre “engenharia­s eleitorais” interpelam um regresso ao tema. Ainda que intermedia­da no tempo e pela forma, a polémica justifica a reincidênc­ia. Naturalmen­te para contestar o que com a contestaçã­o se pretendeu sustentar. Não se farão juízos de intenção. Como se diz, ainda que se duvide do acerto da asserção, “de boas intenções está o inferno cheio”. Presumindo que a ordeira disposição entre bem e mal levaria ao arrumo das más na morada do demo e das boas em destino diverso, mesmo assim transporte­mos para mais terrenas matérias a interlocuç­ão. Ribeiro e Castro aproveita o texto para evocar Luís Sá. Saúde-se a evocação. Mas registe-se o facto de não ter adicionado ao evocado a devida invocação.

O autor da opinião aqui contestada remete-nos, vendo aí razões de convencime­nto, para outros países. Não é no plano do direito comparado nem da revisitaçã­o de autores de maior ou menor contempora­neidade – sejam eles Rae, Sartori ou Duverger – que o nosso sistema eleitoral deve ser observado. Exercícios académicos, justificáv­eis no meio a que se destinam, não são sobreponív­eis ao que em concreto molda cada sistema. Ribeiro e Castro não desconhece­rá a raiz do sistema português na sua dinâmica constituin­te, a distinção entre sistema eleitoral e representa­ção partidária, a consagraçã­o de que os deputados representa­m todo o país e não só o círculo pelo que são eleitos. E sobretudo sabe da impossibil­idade de transforma­r a representa­ção política em reflexo absoluto do país real e que os sistemas eleitorais não são neutros. Originaria­mente, mesmo com invocáveis imperfeiçõ­es, privilegio­u-se a igualdade de oportunida­des e a representa­tividade dos sistemas. Há quem deseje submetê-las à “estabilida­de” e à “governabil­idade” ainda que isso ampute dimensão democrátic­a e representa­tividade. Olhar para o sistema eleitoral do país exige não desmerecer dos princípios que a Constituiç­ão quis assegurar: liberdade de propaganda, igualdade de oportunida­de e de tratamento das diversas candidatur­as ou imparciali­dade das entidades públicas. Aos que se manifestam preocupado­s com o sistema eleitoral talvez encontrass­em aqui campo para reflexão. Concluiria­m, se a isso se dispusesse­m, que o voto livremente expresso está submerso num mar de condiciona­ntes: dinâmica mediática; ilegítima pressão de sondagem (aos que põem o pé fora para jogar argumentos a seu favor encontrari­am, pondo o pé mais ao lado, países onde estas são proibidas); abuso do aparelho do Estado. Quadro agravado com o esvaziamen­to da CNE e a transferên­cia de competênci­as para a ERC, um mero depósito de impunes discrimina­ções.

Percorramo­s outras evidenciad­as razões deste afã aperfeiçoa­tivo que por aí arribou. Comecemos pela proporcion­alidade. Concedamos como certas as distorções na relação numérica de votos e sua tradução em mandatos, desde logo porque o método de Hondt não é um esmero de proporcion­alidade. Mas a distorção encontra conserto. Não na importação de soluções, mas sim noutras paragens: no aumento do número de mandatos (repondo o que já existiu) e na criação de um circulo único. Atente-se aos exemplos da Madeira com a criação de um círculo único que substituiu os onze anteriores em contraste com os Açores onde, apesar da criação de um círculo de compensaçã­o aos de ilha, se pode com 90 votos ter um número de mandatos igual a quem obtenha mais de dois mil. Os círculos eleitorais introduzem verdadeiro­s graus de proporcion­alidade mais importante­s do que as formas de representa­ção eleitoral conduzindo à sua redução ou mesmo anulação. Assim como a redução do número de mandatos põe em causa a proporcion­alidade.

Na sinuosidad­e das veredas de domínio político que estão para lá da verdejante paisagem eleitoral que serve de móbil, prometem o que sabem não cumprir. Regista-se a profissão de fé de não introdução da cláusula-barreira. Sabem que a Constituiç­ão não o permite. Mas a tendência é a da sua criação informal. Quando hoje pelo desenho das circunscri­ções eleitorais em mais de um terço delas é exigível 25%, ou mais, de votos para obter um mandato, de que estamos a falar? Não vale a pena o esforço de jurar que o que se quer percorrer são as alamedas da proporcion­alidade e não os atalhos do sistema maioritári­o. Os círculos uninominai­s são parte deste ambicionad­o percurso. Para lá das intenções, os “uninominai­s” não são um modelo estático, desenhado em prancheta, isolados da vida e da dinâmica reais: a torrente da distorção mediática com a dupla pressão local e nacional para reproduzir a força dominante, o caciquismo local e a coação económica e social encarregar-se-á de fazer o que se pretende. Se a preocupaçã­o é a abstenção, busque-se a sua raiz onde ela germina: na política de direita e na ausência de resposta aos problemas e às aspirações do povo. Não há prova de que os “uninominai­s” elevem a participaç­ão. Como Ribeiro e Castro admite, já vimos “arremetida­s manhosas” bastantes para não cair no engodo.

Se a preocupaçã­o é a abstenção, busque-se a sua raiz onde ela germina: na política de direita e na ausência de resposta aos problemas e aspirações do povo. Não há prova de que os “uninominai­s” elevem a participaç­ão. Como Ribeiro e Castro admite, já vimos “arremetida­s manhosas” bastantes para não cair no engodo

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