Subsídios? “O Estado está a pagar-nos por um serviço público”
Mais um reforço para o apoio da DGArtes garante financiamento a mais 43 estruturas, mas não acaba com a inquietação do setor
“Eu recuso-me a aceitar a ideia do subsídio ou a da mesada. Nós estamos a fazer um trabalho que o Estado não faz. O Estado está a pagar por um serviço público que somos nós que fazemos. Umas pessoas varrem o chão, outras dançam, outras fazem contas.” Sofia Neuparth é diretora do c.e.m. – centro em movimento, uma das 43 estruturas culturais “repescadas” pelo governo, entre 64 consideradas elegíveis, com um novo reforço de 2,2 milhões de euros, anunciado na quinta-feira por António Costa. E apesar de o c.e.m., estrutura de investigação artística com uma forte ação artística e social na cidade de Lisboa, ser agora uma das 183 financiadas pelo Programa de Apoio Sustentado 2018-2021 da Direção-Geral das Artes (DGArtes), a diretora dessa estrutura considera que tal inclusão “não resolve o problema, e é complicada e ofensiva”.
Para Sofia Neuparth, que se candidatou na área dos cruzamentos disciplinares, o problema é mais profundo do que um jogo de cadeiras de quem recebe financiamento, e do que os reforços que sucessivamente têm sido anunciados. “Não existe uma política cultural de fundo”, afirma. Olhando para a avaliação do júri, a artista nota “uma série de situações absurdas em que aquilo que é considerado válido num determinado contexto é invalido noutro, sem qualquer fundamentação”. Quanto aos reforços, Neuparth considera que, uma vez que os critérios de avaliação se mantêm, “a asneira só acaba mais à frente [na lista de candidatos]”.
O facto de ter visto “repescada” a Or- questra de Câmara Portuguesa (OCP), associação que junta a orquestra homónima e a Jovem Orquestra Portuguesa ( JOP), entre outros projetos sociais, não chega para acabar com a inquietação de Pedro Carneiro, diretor artístico e maestro titular da instituição.
“Eu ainda não vi contas”, declara o maestro. “Como recebemos só 10% tocamos só com 10% dos músicos?” Se “não acontecer nenhum milagre”, como Carneiro dissera já ao DN nesta semana, a JOP, a que chama “uma espécie de seleção nacional da música erudita jovem”, tocará a 21 de abril o seu último concerto. A JOP, recorde-se, é a única orquestra portuguesa que integra a Federação Europeia de Jovens Orquestras. “Há três anos ficámos em primeiro lugar, agora ficámos em 34.º”, recorda o maestro, dizendo ter “esperança” no dossiê interministerial que a OCP entregou há um ano e meio com uma proposta de sustentabilidade para o projeto. “O ministro da Cultura disse-me: ‘Vai correr tudo bem.’ Mas fiquei preocupado.”
“Eu não sou subsidiodependente. Subsídio cheira-me a esmola. É o apoio do Estado ao serviço público que a gente presta. O Estado tem de ser regular no apoio que dá”, lança Teresa Ricou, do Chapitô, outra das estruturas agora “repescadas”, depois de se verem sem financiamento, ao contrário do que acontecera até aqui. “Não estamos na dependência total de ninguém a não ser do público que conquistámos, tanto nacional como internacional”, defende, sem, contudo, dar conta de um malabarismo e de um permanente “excesso de trabalho e de tensão” que essa independência acarreta, e da importância do Estado. Ricou, que ficou “muito assustada e chocada” quando viu os resultados provisórios do concurso, dirige uma instituição cujo âmbito vai da ação social às artes circenses ou do teatro.
Neste momento, com o último reforço anunciado por António Costa, elevando o valor global do apoio da DGArtes a 81,5 milhões, a dotação dos concursos fica assim ligeiramente acima dos valores de 2009. O número de entidades financiadas no teatro aumentou de 50 para 68 (em 89 candidaturas), nas artes visuais de 14 para 15 (em 24), na música de 29 para 41 (em 52) e nos cruzamentos disciplinares de 23 para 35 (em 47). Este reforço não interferiu, todavia, com o número de estruturas financiadas na dança e no circo e artes de rua, áreas em que o número se manteve: 21 em 24 na primeira e três em seis na segunda. MARIANA PEREIRA
plicando que este é “o maior corte desde sempre”. “Nos últimos cinco anos recebemos 400 mil euros por ano, metade para a atividade da companhia e metade para a programação do festival. Com um corte de 90 mil euros por ano não vai ser possível avançar com o festival”, diz o diretor artístico.
E nem o reforço anunciado na quinta-feira o deixa otimista: “Até ao fim deste mês, enquanto não houver uma posição oficial por parte da tutela, não podemos estar descansados. Este projeto, já é claro para todos, está a ser mal conduzido desde março, quando este regulamento foi anunciado e quando, pela primeira vez, fez depender da apreciação de um júri, por muito estimável que seja, os montantes a atribuir a estas companhias. É verdade que sempre existiram estes júris, mas a decisão dos montantes a atribuir era política. Para isso é que os governos são eleitos, para decidir.”
Tal como muitas outras companhias, também a de Almada vai contestar a decisão do júri. “Mas só haverá uma decisão final nos últimos dias de abril. E até lá, é com a maior apreensão que olhamos para tudo isto. O tempo vai passando, o festival é em julho, nesta altura temos a programação feita, os contratos celebrados com as companhias, mas não se pode estar à espera quase da véspera do festival para se comprar voos de avião, para se marcar transportes, alojamentos. Todo este impasse já está a ter custos para nós.”
Pedro Alves vai mais longe. “Temos é de começar a pensar em novos modelos, não de financiamento mas de relação entre o Estado e as estruturas, sejam profissionais ou amadoras, elegíveis para receber financiamentos sejam as ditas históricas. Não tem lógica haver essa divisão entre companhias comerciais e companhias emergentes ou históricas. Geralmente essa divisão é feita quando nos convém a nós, ‘porque cumprimos um papel de serviço público’. Pergunto eu: e o Filipe La Féria ou a UAU, ou outras produtoras da área da música ou do cinema, não cumprem também isso? Tem de se repensar, mas de maneira a incluir todos, porque todos servem diferentes públicos”, defende o diretor artístico do Teatromosca, que neste ano se estreia nos apoios sustentados.
A atriz Cristina Carvalhal, também pela primeira vez com apoios sustentados da DGArtes através da estrutura Causas Comuns, aponta críticas ao modelo. Reconhecendo que o financiamento de 110 mil euros para 2018 e 2019 “permite-nos pensar mais a médio e longo prazo e ter uma continuidade que até aqui não era possível”, concretiza alguns aspetos a mudar. “É claro que a antiguidade não é um posto, mas as comissões de acompanhamento, que até estão previstas na lei, têm mesmo de existir, e se perceberem que não há um bom trabalho por parte da entidade, têm de avisar e se calhar até prever sanções caso as coisas não melhorem. Como as coisas estão, e sempre estiveram, é um concurso e isso [a exclusão de companhias históricas] pode sempre acontecer”, defende. Por outro lado, tal como Miguel Honrado já havia reconhecido na terça-feira, lembra que não se pode incluir no mesmo concurso programação e criação. A questão das estruturas municipais, geridas por associações, poderem concorrer em pé de igualdade com entidades sem esse apoio é outras das críticas que deixa.
Em Canas de Senhorim, vive-se “um misto de emoções”. É aí que está sedeada a companhia Amarelo Silvestre, que também se estreia nos apoios sustentados. “Ficamos tristes por vermos colegas que respeitamos que têm feito um trabalho importante ao longo dos anos, e agora ficam sem apoio. Por outro lado, reclamamos o nosso espaço”, refere o diretor artístico desta companhia de teatro criada em 2009. “Para nós não seria escandaloso perder este concurso. Sempre trabalhámos com a precariedade no horizonte e isso não nos impedia de continuar a fazer o nosso trabalho. Antes de pedir qualquer tipo de apoio tínhamos de mostrar o que éramos capazes de fazer. E, neste momento, acho que é merecido. Já temos um histórico que nos permite achar que é perfeitamente legítimo ter este apoio. Sabemos que nos concursos alguém tem de ficar de fora. Quando ficam os grandes faz-se barulho, mas os pequenos também têm de ter o seu espaço. Devia haver uma diferenciação entre este patamar [em que está a Amarelo Silvestre] que é muito diferente do de companhias com um percurso já histórico. Não deixa de ser estranho ficarmos classificados à frente de companhias como os Primeiros Sintomas ou o Teatro Experimental do Porto”, refere ainda.
No entanto, não é a primeira vez que o TEP vê fugir-lhe o tapete, pois, ao longo de 65 anos de atividade, já mudou várias vezes de casa e teve de se reinventar sempre que perde apoios. Laura Castro, a presidente da direção, recorda “o momento em que a companhia perdeu o espaço próprio e passou para Gaia, sem qualquer apoio do Estado, perdendo algum contacto com o público do Porto e alguma capacidade de afirmação na criação contemporânea”. A renovação, segundo a própria, aconteceu em 2012, quando “a direção da altura convidou o Gonçalo”: “O TEP tem naturalmente uma memória importantíssima, não só cultural e artística, mas também social e política, e o seu espólio espelha as men-
talidades da época, mas isso, por si só, não aguenta uma companhia de teatro. Portanto, o Gonçalo Amorim foi responsável por colocar na esfera cultural o Teatro Experimental do Porto. E não o faz sozinho, fá-lo com um conjunto de pessoas de que se foi rodeando.” Necessidade de uma casa própria Elogios à parte, o diretor artístico reconhece que “não é fácil fazer cultura no Porto. É mais valorizado o cidadão de Lisboa do que um do Norte, sendo complicado manter uma atividade cultural sustentada nesta região”. E, entre os diversos reveses, Gonçalo recua até 1979 quando, fruto da crise, o TEP vendeu o Teatro António Pedro, perdendo o “ninho” para as suas produções: “Em 1981, muda-se para a Escola Académica, onde fez a sua sala-estúdio até 1994, altura em que um grande incêndio destruiu o teatro e o TEP começou uma peregrinação por vários espaços à procura de apoio.Voltou para o Sá da Bandeira, foi para a Casa das Artes, até que encontrou o seu poiso em Gaia, onde esteve 14 anos, permitindo continuar a sua obra.” Mas, “a certa altura, Gaia mudou a sua política cultural e achou que já não fazia sentido o TEP estar ali e cortou-nos o apoio. Isso coincidiu também com a mudança política no Porto, que entendeu que deveríamos voltar à cidade. Ainda não está totalmente no Porto como gostaríamos, mas foi o primeiro passo para nos mantermos”.
À parte orçamentos e questões monetárias, há todo o legado material que se foi somando, por isso também “é premente para o TEP encontrar um sítio para o seu espólio”. Afinal, “o TEP passou por muitas fases, o que faz que tenha um arquivo valiosíssimo, fotográfico, documental, uma quantidade enorme de obras de arte, um acervo de um valor patrimonial valioso, desde desenhos de figurinos a desenhos de cenografia, a quadros. Isto para não falar de figurinos históricos que temos guardados, a maior parte na nossa antiga sede em Vila Nova de Gaia”, regista Gonçalo.
O presente divide-se “entre a sala de ensaios no Teatro do Campo Alegre, que é também o centro de apresentações dos espetáculos do TEP, o Rivoli, e temos a Câmara Municipal do Porto e o Teatro Municipal do Porto a apoiar-nos com coproduções. Temos ainda, desde o ano passado, conseguido boas coproduções com o Teatro Municipal de Matosinhos, que é uma parceria nacional, assim como o Teatro Nacional de São João, o Teatro D. Maria II, só para dar alguns exemplos de que o TEP se vai sustentando também com estas parcerias”.
Ter uma casa própria é importante. Mas só isso não chega. Que o diga o Teatro das Beiras, com auditório próprio, instalado numa antiga fábrica de lanifícios, que sem o apoio da DGArtes estava em risco. Esta é uma das 43 estruturas que com o reforço orçamental deverá passar a receber financiamento, tal como o Teatro Experimental de Cascais. Uma boa notícia para Fernando Sena. “Mas esta situação de virem os apoios a conta-gotas não resolve o problema de fundo: a própria fórmula concursal. Essa é que tem de ser alterada”, defende o diretor artístico. “Vimos de um corte de 280 mil euros para 90 mil euros. Estes últimos cinco anos têm sido muito duros. Para sobreviver reduzimos as produções de quatro para duas e diminuímos a programação do Festival de Teatro da Covilhã.” Na candidatura aos apoios do quadriénio 2018-2021, a companhia, fundada em 1974 e que se profissionalizou em 1994, propôs quatro novos espetáculos, a juntar aos cerca de 70 vistos por 260 mil espectadores ao longo dos 24 anos de atividade. “Tínhamos solicitado um apoio de 200 mil euros mas com a pontuação que temos, 68.25, o que dará cerca de 135/140 mil euros por ano. Algum destes espetáculos vai ter de sair”, antecipa. Uma escolha que vai ser difícil: “É como se estivéssemos a cortar um dedo da mãozinha.”
Sem dinheiro estatal, certo é que a produção não para. Na Covilhã está em cena O Mundo Mágico e em Matosinhos o Teatro Experimental do Porto tem em cena a sua Mochila, segunda produção de 2018. Depois do arranque anual na Invicta, a companhia mostra em Matosinhos que não tem medo de arriscar, lançando sete jovens do concelho numa “teia” narrativa que envolve não só atores como o público que se senta em pleno cenário. Longe dos fios que se hão de tecer na terça-feira, na Assembleia, com a audição do ministro da Cultura, e na quinta-feira, em São Bento, quando António Costa receber a comissão informal de artistas que têm contestado os critérios do concurso.