A escrita de um realista inconformado
Quarta, 11 de abril, é lançado na Gulbenkian Na Prática a Teoria é Outra (D. Quixote), reunião dos textos de Victor Cunha Rego. Relembramos o seu percurso na escrita e na vida
QuandoVictor Cunha Rego morreu, a sua independência de espírito e a forma como esta era respeitada ficaram consagradas na multiplicidade de elogios que recebeu. Até Mário Soares, de quem a certa altura se afastou, escreveu um artigo para o DN intitulado “Um Visionário e Um Patriota”. Mas houve mais. Mário Mesquita, que foi diretor adjunto do DN entre os meses de dezembro de 1975 e junho de 1976, numa altura em que Cunha Rego era diretor, começa o artigo “Um democrata solitário” com esta declaração: “Após a Revolução de Abril de 1974, Victor Cunha Rego revelou-se um dos políticos mais capazes de interpretar a complexa conjuntura da época e de agir, com pragmatismo, numa sociedade em convulsão após 48 anos de ditadura.” Marcelo Rebelo de Sousa, no Público, lembrou-o desta forma: “Penetrante no exame das pessoas e dos factos. Mas também apaixonado nas adesões e nas recusas.” Miguel Sousa Tavares, no mesmo jornal, caracterizou-o nestes termos: “OVictor era um pessimista militante, frio e cáustico nas análises, terno e envolvente nos sentimentos. O seu pessimismo era, contudo, uma forma de acumular energias para o combate, porque ele foi sempre um eterno guerrilheiro em busca da lucidez.”
Mas esta peça vem a propósito do lançamento de um livro que reúne os seus textos entre 1957 e 1999 e por isso é de avançar para um deles, intitulado “Da sedução à crise”, escrito por Cunha Rego em outubro de 1992 para uma edição experimental do DN. “Os jornais deste fim de século ou são embaixadores da condição humana ou nada são.” E o que lhes cabe? “Viver os dramas das pessoas como se fossem deles, livrar as democracias do cool ou do soft que as corrompem e combater a indolência política de que, nas memórias, Stefan Zweig, à sua maneira um grande jornalista, falava a propósito da Áustria no fim do século passado (o coração da Europa), é um imperativo do destino.” E pergunta como pode o jornalista cumpri-lo. “Há dois fatores primordiais: o prazer (o que lhe agrada fazer) e a ética (o que deve fazer).” Remata: “É tão simples quanto isso.”
Lendo as 856 páginas de Na Prática a Teoria é Outra, com organização deVasco Rosa e André Cunha Rego, nota-se a presença constante destes dois fatores na prosa de um jornalista de vida muito rica, cheia de experiências diversas, que se estreou nos jornais aos 23 anos no Diário Ilustrado, leu na juventude 30 volumes da obra de Lenine, admirou Trotsky, viveu em países como o Brasil, a Argélia, a Jugoslávia e a Itália, fez parte do Diretório Ibérico de Libertação (DRIL), participou no assalto ao paquete Santa Maria, foi editorialista do Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo, membro do Partido Socialista Português, apoiante de Francisco Sá Carneiro na AD, presidiu à candidatura do general Soares Carneiro à Presidência da República e fundou e dirigiu o Semanário.
Na escrita sempre fez, dentro das contingências de uma personalidade própria e de uma distinção pessoal do que era essencial e do que era acessório, uma mistura entre gosto e imperativo. Entre paixão e procura de verticalidade. E revelou uma vocação clara para o pluralismo, contra todas as tentações totalitárias. No primeiro, chamemos-lhe assim, capítulo, “Liberdade”, com prefácio de Otavio Frias Filho, diretor da Folha de S. Paulo, muito marcado pelo antissalazarismo, encontramos num texto de 1958, no qual é enaltecida a coragem política da candidatura de Humberto Delgado, uma sentença que não deixa dúvidas: “Da ditadura da extrema-direita à ditadura da extrema-esquerda vai o salto de uma cobra.” Mais à frente, em “Culpa em Portugal”, coluna editada no Estado de S. Paulo, fez uma previsão: “Quando o povo português descobrir que não é culpado, muita coisa acontecerá.” A 28 de abril de 1974, prudente, observou, em texto para a Folha de S.Paulo: “Não acreditamos que seja possível governar o país e levá-lo em direção democrática se a esquerda não contiver os elementos radicais.” Já no DN, num texto intitulado “O Esquerdismo e a Direita” (24 de janeiro de 1976), comentou: “O país precisa de eleições livres, em paz, sem convulsões.”
Em entrevista a Nuno Miguel Guedes (revista K, número 12, setembro de 1991), retratou o papel do jornalismo na sua biografia: “O jornalismo foi o fio condutor da minha vida, o meu cúmplice, onde encontrei maior fator de cumplicidade.” O jornalismo como escrita e como coordenação. José Miguel Júdice, no prefácio que faz ao capítulo do livro dedicado à fase Semanário (1983-91), enaltece a sua capacidade de compatibilizar figuras tão diversas (como José Cutileiro, Paulo Portas, António Borges, Braga de Macedo e Luís Campos e Cunha) que colaboravam no jornal e a redação, muitas vezes com opiniões à esquerda. “Era ele quem conseguia gerir esta imensa quantidade de personalidades e de grandes figuras, quem gerava os equilíbrios inevitáveis, quem definia a linha estratégica da publicação.”
Em “Poema é Pouco” (23 de dezembro de 1983), o tema Deus e, em particular, a figura de Jesus, que começaram a aparecer na última fase da sua vida, surgem de forma clara: “O ‘homem novo’ não existe nem existirá. Mas o homem melhor foi e voltará a ser possível, desde que enfrente esse desenlace e consiga o renascimento da fé e dos seus profetas no mundo.” A partilha da fé tem, como quase tudo em Cunha Rego, um opositor. É ele que escreve, num texto de 4 de outubro de 1984: “Hoje, o pessimismo é o único berço do otimismo.” Começam a tornar-se patentes as críticas aos clientelismos, aos favores – à corrupção. Aos tráficos, a começar pelo da droga, à violência pela televisão, à pornografia (em contraponto ao erotismo), aos ídolos alienados e decadentes. Num texto de 28 de setembro de 1985, faz uma exceção no campo do rock: “Bruce Frederick Joseph Springsteen, autor de Born in the U.S.A. (1984).Talvez seja este, no mundo dos mitos, o precursor de uma geração de rebeldes com causa.”
No dia 20 de fevereiro de 1983 foi publicada no DN uma entrevista concedida aVasco
Pulido Valente, intitulada “Um conspirador ingénuo”, na qual PulidoValente perguntou: “Que marcas deixou o exílio na sua personalidade política: na visão e no método?” Obteve a seguinte resposta: “A política, para quem não tem uma formação técnica, é a única atividade compatível com uma certa nobreza (...). A nobreza de se poder fazer alguma coisa gratuitamente, numa área onde a corrupção é muito grande, onde os interesses são mais visíveis.” O balanço que nessa altura faz da participação política é este: “Em 30 anos de vida política, passei apenas dois junto do poder (um com Mário Soares e um, com menos intimidade, com Sá Carneiro) e passei 28 na oposição a Salazar, a Marcello Caetano, a Vasco Gonçalves, a Costa Gomes e, agora, ao general Eanes. Esse itinerário político marcou-me.” Sobre a “questão” de Deus, deu o seguinte depoimento: “Quando era mais jovem, vivi uma vida cheia de aventuras. Nada secretas – pelo contrário. Depois comecei a refletir. Impressionou-me o milagre do nascimento. Talvez, pela primeira vez, pensasse também na morte. Principiei a fascinar-me com o problema de Deus. Hoje sou religioso. Rezo, vou à igreja. O que contribuiu talvez para que as pessoas confundissem com gosto da secretividade, o que é, essencialmente, uma visão solitária da vida.”
E é esse homem só e reflexivo que lemos em “Os dias de amanhã”, a coluna que significou o regresso ao DN, agora como colunista de segunda a sexta na última página do jornal. “Um modelo bonsai de comentário prestigiado com múltiplos sucedâneos em várias publicações desde então”, como referem Vasco Rosa e André Cunha Rego na “Apresentação”. É publicada, por respeito às escolhas do autor, a versão editada pela Contexto Editora. São 300 colunas de entre as 1500 publicadas – entre 1992 e 1999. No prefácio à primeira edição fica expresso que Victor Cunha Rego não era um entusiasta de um capitalismo sem tempero: “A globalização do capital financeiro pode ser, ela sim, o Big Brother e a génese de ditaduras ferozes.” A declaração de um moderado, que pensava na complexidade dos assuntos sem deslumbres e fundamentalismos.
Mário Mesquita, em texto editado na Folha de S. Paulo em 23 de janeiro de 2000, muito pouco tempo depois da sua morte, escreveu: “Não creio que a dicotomia direita-esquerda seja a forma mais interessante de abordar uma personalidade multifacetada e complexa como Cunha Rego.” Explicou: “Talvez se possa dizer que o pessimismo, quase hobbesiano, o aproximava da direita, enquanto o inconformismo, que o revoltava contra os ultraliberais e o culto do dinheiro, o encaminhava para formas de pensamento normalmente identificadas com a esquerda (...). Nos seus artigos associava duas facetas: o pessimismo e a revolta. Mas, globalmente, os seus textos de intervenção dos anos 1990 reconciliaram-no com a esquerda que, noutros tempos, o criticou duramente.”
De esquerda ou de direita, ou ainda de centro, o certo é que as colunas de “Os dias de amanhã”, sobre temas políticos, sociais, culturais, económicos, religiosos, mundanos, representaram um exercício raro de escrita curta e cheia de significado e deram um prazer maior a muitos leitores de diferentes gerações. Agora podem ser revisitadas.