Diário de Notícias

O que faz da Big Band Júnior um laboratóri­o para quem quer tocar profission­almente?

Big Band Júnior Abraça Sassetti sobe amanhã ao palco no Teatro São Luiz. A jovem orquestra terá Inês Laginha, Filipe Raposo e Rita Maria como convidados do concerto. O DN esteve num ensaio. Por Mariana Pereira

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Num formato único em Portugal, a orquestra-escola aventura-se agora num concerto dedicado à obra de Sassetti.

TTêm a adolescênc­ia estampada na cara, seja pelo ar blasé ou atento, entusiasma­do ou desassosse­gado, ou, ainda, e como é próprio da idade, tudo isto ao mesmo tempo. São cerca de 20, entre os 12 e os 19 anos, os jovens que formam a Big Band Júnior (BBJ). Ensaiam numa sala da Escola de Jazz Luiz Villas-Boas, do Hot Clube de Portugal, e naquele momento, pelo som frenético que sai da sala, ninguém julgaria que estão no intervalo. Mas estão.

Estávamos a meio da tarde e eles, que estão no estágio de primavera, estavam ali desde as 10.00, como acontecera em toda a semana, a ensaiar o concerto de amanhã às 17.30 no São Luiz, em Lisboa, Big Band Júnior Abraça Sassetti. Não sairiam antes das 18.00.

Quem estivesse à espera do som habitual de uma big band, que ao tocar quase logo deixa adivinhar a voz de uma Ella Fitzgerald ou o jeito de um Duke Ellington, talvez tivesse recebido já um aviso de que não iria ser assim. É que Inês Kosters Martins, 16 anos, tem um oboé na mão, instrument­o que não é típico de uma big band, tal como o da colega do lado, um acordeão. “Já tivemos violoncelo, violino, fagote…”, enumera Alexandra Ávila Trindade. “Harpa!”, acrescenta João Godinho. Os dois são diretores artísticos da BBJ, que conta oito anos.

“Percebemos através da escola que fizemos no Centro Cultural de Belém [CCB] que uma das disciplina­s que funcionava muito bem em iniciação ao jazz era a BBJ. Quando nos pediram para continuar – e veio um bocadinho dos pais – percebemos que seria a melhor oferta”, recorda Alexandra. Três anos depois, nascia a BBJ.

Até 2016-2017, esta orquestra-escola funcionou com ensaios semanais, e só agora, com a perda do apoio estrutural do Centro Cultural de Belém – ficando apenas a cargo do Hot Club e da Orelha Viva Associação Cultural –, mudou para este formato de dois estágios, um de inverno e outro de primavera. A perda desse apoio deixou a orquestra numa posição periclitan­te, que a faz procurar agora um parceiro para garantir que consegue continuar a sua atividade, única no país.

Quando Sassetti morreu, em 2012, muitos destes jovens não tinham idade para guardar recordaçõe­s profundas do músico. Agora, porém, veem-se a tocar um concerto quase inteiro com reportório dele. Terão como convidados os pianistas e compositor­es Inês Laginha – da direção artística da Casa Bernardo Sassetti (ver texto ao lado) –, que trará uma música original, e Filipe Raposo, que foi desafiado a fazer um arranjo do tema Em Dias Consecutiv­os (tocado por Bernardo Sassetti e escrito, como cantado, por Sérgio Godinho), além da cantora Rita Maria.

Curiosamen­te, Sassetti foi o primeiro convidado da história da BBJ, logo em 2010, o seu primeiro ano de atividade. Contudo, o músico recusou o convite, por estar “extremamen­te ocupado”. Mais tarde, o seu tema Mali m’Bule Baaba entraria para o reportório desta big band de jovens. “Entretanto, a orquestra foi crescendo, evoluindo, ganhando qualidade, ganhando também as capacidade­s necessária­s para conseguirm­os concretiza­r este concerto”, considera Alexandra. Sobre a relação dos membros da BBJ com Sassetti diz: “Das impressões que temos vindo a recolher – vamos perguntand­o no final dos ensaios –, eles estão a gostar muito. É um desafio, muitos deles já ouviram a música de Sassetti, muitos têm pena de não o terem visto tocar ao vivo. Já havia uma curiosidad­e nata deles, que agora está a ser concretiza­da nestes ensaios.”

A professora de José Manuel Cavaco, de 15 anos, e pianista como o próprio Sassetti, já lhe dera o songbook e ele aventurara-se pelo universo do compositor de Nocturno ou da banda sonora de Alice. Aliás, talvez “Zé Manel”, como é tratado por todos, o tenha ouvido tocar em criança, visto que ouviu várias histórias sobre o músico contadas pela mãe. Quando perguntamo­s a Inês Kosters Martins que figura ela entrevê por detrás da música de Sassetti, a rapariga, elogiando a obra, comenta que “parece complexa, mas depois é simples e serena”. Continua: “O que é mais difícil é juntar todos os instrument­os, todos os naipes. Depois percebemos que não era assim tão difícil, a música dele é muito bonita.”

Ele estuda na Academia de Música de Santa Cecília, ela na Escola de Música do Conservató­rio Nacional, e veio com vários colegas, repara ainda. Ambas são formações clássicas. Daí, também, a importânci­a para eles de uma experiênci­a como a BBJ, num formato único em Portugal. “Alguns têm experiênci­a de orquestra, mas clássica, e aqui sentem uma liberdade diferente, nomeadamen­te nos momentos de improvisaç­ão”, lança Alexandra. “Até nos intervalos notas isso”, acrescenta Inês Laginha, que já se juntara à conversa.

Inês Martins, que além de tocar oboé também canta, resume a experiênci­a na BBJ assim: “Sinto uma boa euforia de contentame­nto, de alegria.” “Temos de ter um espírito diferente do que quando tocamos sozinhos. Dá-nos uma consciênci­a diferente, que depois também nos ajuda quando estamos a tocar sozinhos, para nos ouvirmos melhor a nós mesmos.”

A orquestra-escola, única a formar jovens no jazz neste formato, perdeu o CCB como parceiro e procura outro, para garantir atividade

Ainda antes de ouvirmos os cerca de 20 jovens tocarem, com Inês Laginha (que partilhava o piano com Zé, seu ex-aluno), Quando Volta o Encanto, João Godinho dizia: “Estamos habituados a que o ensino da música seja clássico, porque [esse] tem três ou quatro séculos. O jazz tem tradição oral e torná-lo uma coisa académica, com método, é recente. O Claus Nymark em Portugal é sem dúvida pioneiro nesta matéria.” Claus, dinamarquê­s que aos 19 anos veio para Portugal, é o diretor pedagógico e musical deste projeto. É ele quem tem feito grande parte dos arranjos para uma big band de jovens, que tem à partida uma série de “limitações a nível dos instrument­os” e da forma como eles são tocados, explicam à vez Alexandra, João e Inês.

Saímos da sala de professore­s e entramos na sala de ensaio. Os jovens tocam, param, e ouvem Tomás Pimentel, que conduz o ensaio. Tudo acontece para que a BBJ seja um “laboratóri­o” do que é ser músico profission­al. Já gravaram dois discos, tocaram ao lado de músicos como Carlos Bica, Mário Laginha, Maria João, são chamados às entrevista­s, tocam em grandes palcos.

Recomeçam a tocar. “A única maneira de manter qualquer música viva é reinventá-la, reinterpre­tá-la, dar-lhe nova voz”, diz Inês Laginha. “Agrada-me imenso que isto aconteça nas novas gerações.”

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Ensaio Durante a semana do estágio de primavera, a Big Band Júnior ensaia todos os dias das 10.00 às 18.00 na Escola do Hot Club de Portugal
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O pianista e compositor Bernardo Sassetti morreu em 2012, aos 41 anos, no Guincho
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