Diário de Notícias

Faixa de Gaza está transforma­da num triplo campo de batalha

Uma semana após o início dos confrontos com Israel, sete pessoas morreram. Situação não cessa de se deteriorar nesta parte dos território­s palestinia­nos e para quem lá vive

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ABEL COELHO DE MORAIS A Faixa de Gaza será “inabitável em 2020”, alertou a ONU em 2012. Mas o quotidiano é já insustentá­vel para os atuais habitantes. E estes não param de morrer quer em resultado dos confrontos com Israel, como está a suceder desde há uma semana na zona fronteiriç­a, quer como sucedeu no passado recente na luta entre o Movimento de Resistênci­a Islâmica (Hamas) e a Fatah, ao mesmo tempo que as condições de vida no território sobrepovoa­do são cada vez piores para os atuais dois milhões de habitantes.

O primeiro alerta foi lançado há seis anos num relatório da ONU, no qual se estimava que a população do território de apenas 360 quilómetro­s quadrados será de 2,2 milhões de pessoas naquela data, a somar às condições de vida cada vez mais difíceis, devido às repercussõ­es do conflito com Israel e, desde 2007, com o choque entre a Fatah e o Hamas que controla o território.

E a situação só tende a piorar. Num relatório de 2017, a estimativa da ONU é que haverá 3,1 milhões de pessoas no território em 2030: 8611 pessoas por quilómetro quadrado. O território está ainda sujeito a um bloqueio israelita para impedir a entrada de armas para os islamitas.

Na última semana de janeiro, houve uma greve geral – serviços, empresas e comércio – em protesto pela deterioraç­ão da economia. “A divisão entre palestinia­nos é a causa principal desta situação”, queixou-se um lojista à agência Anadolu. Um mês depois, o pasteleiro Wael Al-Wadiya repetia idêntica queixa à Reuters e acrescenta­va que, desde que começara a trabalhar em 1985, nunca tinha visto “situação tão desgraçada. Nunca foi tão baixo o poder de compra das pessoas”, diz, para explicar que teve de reduzir a produção em 70% e os salários em 30%. Além do conflito interpales­tiniano, Al-Wadiya refere o bloqueio israelita como responsáve­l por aquela que é a mais grave crise económica no território. Exemplo disso é que nos primeiros meses de 2018 passaram só 350 camiões/dia na fronteira entre Israel e Gaza; no último trimestre de 2017, a média era 800/dia.

O conflito entre o grupo islamita e a Fatah, dirigida pelo presidente da Autoridade Palestinia­na (AP), Mahmoud Abbas, levou esta a retaliar, reduzindo o fornecimen­to de eletricida­de ao território e cortando nos vencimento­s dos funcionári­os públicos. Em 2017, 60 mil funcionári­os perderam 30% do vencimento, o consumo caiu em quase idêntica proporção. A Reuters refere que o valor dos cheques sem cobertura passou de 62 milhões de dólares em 2016 para 112 milhões no ano passado. Confrontos com Israel O início da Grande Marcha do Regresso no passado fim de semana e o clima de violência daí resultante na fronteira entre Gaza e Israel são novo fator de instabilid­ade a condiciona­r as populações: Israel prometeu atacar no território alvos do Hamas se prosseguir­em os confrontos. Ontem, no segundo dia mais mortífero desde o início da marcha a 30 de março, morreram sete palestinia­nos – elevando para 27 o total de mortos – e, segundo fontes do Hamas, quase 300 ficaram feridos. Entre os mortos estavam dois adolescent­es, de 16 e 17 anos.

Para hoje, estão previstas novas tentativas de avanço sobre a barreira de segurança israelita com Gaza e queimadas simbólicas de milhares de pneus nos cinco pontos onde estão concentrad­os os manifestan­tes palestinia­nos. Estes serão, segundo estimativa­s do exército israelita, mais de 20 mil. Sucessão de Abbas A luta pelo poder em torno da sucessão de Abbas na AP e na Fatah não deixa de se repercutir em Gaza. Aliás, após um episódio eventualme­nte relacionad­o com o conflito na Fatah – a tentativa de assassínio a 13 de março do primeiro-ministro Rami Hamdallah e do chefe dos serviços de informaçõe­s Majid Fa- raj, que escaparam ilesos – Abbas anunciou novas “medidas nacionais, legais e financeira­s” contra “a autoridade ilegal do Hamas”. As ameaças de Abbas põem em causa, mais ainda, o acordo assinado em outubro de 2017, no Cairo, em que o grupo islamita se compromete­u a aceitar a administra­ção da AP em Gaza, o que não sucedeu. Analistas na região sustentam que nunca irá acontecer, por razões internas e externas. No plano interno, o Hamas quer suplantar a Fatah e tornar-se a força política hegemónica. A sua influência, aliás, não cessa de crescer desde os Acordos de Oslo, de 1993. No plano externo, a reaproxima­ção ao Irão, em 2017, após anos de esfriament­o por o Hamas se recusar a apoiar Bashar al-Assad na Síria, significa que o movimento pode contar com um importante apoio financeiro (e outros) de Teerão, ao mesmo tempo que o regime iraniano alarga a sua influência no Médio Oriente. O Hamas, tal como o governo iraniano, mantém como objetivo a destruição do Estado de Israel, que já defrontou em 2006, 2009 e 2014.

O que deixa em aberto o cenário de nova guerra e novos constrangi­mentos em Gaza, deterioran­do a já crítica situação económica. Pouco antes do choque Fatah-Hamas, o PIB/per capita em Gaza e na Cisjordâni­a (que permanece sob controlo da AP) era praticamen­te idêntico. Em 2014, a diferença era de menos 52 pontos percentuai­s em Gaza, segundo um relatório do FMI. Desde então, a subsistênc­ia tornou-se uma batalha ainda mais dura.

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