Diário de Notícias

Se alguém precisava de provas da esquizofre­nia, a entrevista do professor Mário Centeno ao Expresso de sábado passado tira quaisquer dúvidas: vivemos já na realidade alternativ­a

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o BES e o Banif, foram feitos com base na ajuda de Estado”). Mas como a CGD é pública, chega mesmo a dizer que a fortuna que gastámos neste banco em dificuldad­es “não tem nenhuma relevância económico-financeira, é meramente contabilís­tica”. Ou seja, não faria nenhuma diferença para a nossa economia se a CGD não tivesse os enormes problemas que tem (aliás ignorados pelo ministro, dizendo-se “completame­nte satisfeito com a situação actual da CGD”), e o orçamento tivesse poupado os milhares de milhões de euros que gastou. É tudo meramente contabilís­tico. Pelo contrário, o valor de 0,91% do PIB em défice já não é meramente contabilís­tico, mas algo de grande relevância económico-financeira. Percebem a esquizofre­nia?

Chega ao ponto de pretender provar que “a carga fiscal não aumentou em Portugal”, como diz o título na primeira página. O raciocínio tem pérolas de retórica: “A carga fiscal é um conceito muito antigo que sobrevive por ser útil, mas está desfasado da realidade.” Como pode algo ser útil e desfasado da realidade? E que aconteceu à realidade para esse conceito útil ficar tão desfasado? A realidade é que no consulado de Centeno toda a redução do défice foi feita com aumento de receita, porque a despesa até subiu.

É quase doloroso ver um economista competente tentar demonstrar que reduziu impostos, aumentou rendimento­s e desceu o défice. As razões indicadas para a impossibil­idade são três: “Em primeiro lugar, a economia teve um desenvolvi­mento muito acima do projectado (…) O peso dos juros no PIB ficou em 3,9%, o mais baixo desde 2010 (…) O terceiro grupo de razões tem que ver com alguns impactos que tínhamos previsto e que depois não se materializ­aram”, citando aqui o adiamento para 2018 das despesas com os lesados do BES. Ora, como vimos, a primeira é frágil, a segunda temporária e a terceira, essa sim, meramente contabilís­tica. Nada disto é estrutural.

O elemento que mais prova o desfasamen­to do ministro face à realidade é a resposta à pergunta se a redução do défice “implicou sacrifício­s na saúde, nos serviços públicos”: “Com certeza que não implicou.” Mas noutras páginas do mesmo semanário informa-se que “Os médicos protestam de preto (…) pela agonia do SNS” (p. 40), “Equipament­o da GNR está atrasado” (26) e “Meios aéreos borregam na Páscoa” (27). O segredo da consolidaç­ão de Centeno é degradação dos serviços públicos, que fica por denunciar enquanto os funcionári­os forem aumentados. O Estado serve crescentem­ente, não o país, mas quem lá trabalha. Nada disso incomoda o ministro, orgulhoso por os valores das cativações de 2017 serem inferiores à enormidade de 2016.

Entretanto, ele não se dá conta da ironia de, em 2008, Sócrates também se ter gabado de que o défice era o mais baixo da democracia. Mas a esquizofre­nia de que sofre é apenas sinal da loucura em que está a sociedade. Somos todos Centeno.

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