Quem rouba um milhão é barão, lá diz o povo
Uma árvore não pode tapar a floresta, etc., etc. Mas a floresta parece com toda a nitidez quando alguém mostra que a árvore faz parte da maioria
As pessoas, lá está. Quer dizer, nós todos, comunidade, nós que em tempos idos entendemos que era necessário criar um sistema de justiça
Não sei quais são os critérios, as tabelas, as normas nem as práticas habituais neste tipo de casos, mas sei o que são dez mil euros. Palavras para quê?
“Há uma certa brandura dos tribunais nos crimes contra pessoas, um indicador que deve merecer reflexão”, disse a socióloga e investigadora Conceição Gomes ao DN a propósito da aplicação de pena suspensa a um professor que abusou repetidamente de uma criança de 10 anos, naquilo que foi descrito como “atos sexuais de relevo”. Foi condenado a quatro anos e meio e ao pagamento de dez mil euros à vítima.
Não sei se prender um pedófilo contribui de alguma maneira para alterar o seu comportamento, mas estou certa de que não o ter por perto é uma forma segura de garantir que não vai molestar aquela ou outras crianças. O tribunal deu como provado que ele tinha praticado os tais difusos atos sexuais de relevo, ele manteve que não, que a criança o acusara por vingança por lhe ter dado um “ralhete”.
Tudo nesta história parece sórdido, mal contado, mal resolvido, mais um daqueles episódios que lançam suspeição sobre o sistema – espero que injustamente. Porque uma árvore não pode tapar a floresta, etc., etc. Mas a floresta aparece com toda a nitidez quando alguém que traz argumentos sólidos, dados concretos, mostra que a árvore é uma de entre muitas, uma que faz parte da maioria. Disse Conceição Gomes: “Os crimes contra o património são mais penalizados do que os crimes contra as pessoas.” As pessoas, aí está. Quer dizer: nós todos, comunidade, nós que em tempos idos entendemos que era necessário e desejável criar um sistema de justiça e que o fomos estudando e aperfeiçoando ao longo dos séculos. E se a vítima é uma pessoa sem estrutura para resistir e defender-se – neste caso, uma criança – mais revoltante é a coisa baseando-se num estudo do Observatório Permanente da Justiça: “Há alguma brandura na punição da criminalidade no âmbito da violência doméstica e abusos sexuais, em relação a outro tipo de crimes.”
Não se trata de uma novidade, esta atitude da justiça e da sociedade em geral que durante décadas varreu estas questões para baixo do tapete. “Entre marido e mulher não metas a colher”, dizia-se e praticava-se. Mas isso não pode significar que não devemos falar no assunto, discutir, pôr em causa, ter opinião, tomar posição.
No meio do que encontrei em pesquisas sobre o tema da justiça, destacou-se a citação de um livro do mestre filólogo Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989). Não foi nesta mesma obra mas noutra – Lições de Literatura Portuguesa – que estudei no liceu, nas mãos de ótimos professores. É um trabalho minucioso de um investigador que, por razões políticas, estava afastado do ensino (no que estava muito bem acompanhado por outros ilustres professores como Aurélio Quintanilha e Abel Salazar). Esteve preso, foi perseguido, exilou-se no Brasil e só re- gressou depois da Revolução de 1974.
Estudei com a ajuda do livro dele a literatura medieval portuguesa e dele retenho ainda a preocupação com o enquadramento social e histórico. Não se limitava a escalpelizar as cantigas de amigo e outras obras dos trovadores, mas situava-nos no contexto da época. Avanço então para o que neste sábio vai parar às questões da justiça.
Diz ele no livro Estilística da Língua Portuguesa: “O emprego do eufemismo também caracteriza certas camadas sociais. A um homem da plebe que comete um furto, as gazetas não hesitam em exprobrar ao ladrão, ao gatuno, o roubo que praticou; mas se um homem de alta sociedade cometeu o mesmo crime, então os redatores adoçam servilmente a frase e escrevem: desvio de fundos, fraude, alcance, etc. O povo observou perfeitamente esta injustiça e fez sobre ela um provérbio admirável: Quem rouba um pão, é ladrão; quem rouba um milhão, é barão.” E, acrescento eu, quem rouba a inocência de uma criança é o quê?
E então volto ao princípio desta história porque houve um valor que me ficou a tocar campainhas. O professor que praticou atos sexuais relevantes com uma criança ao longo de um ano foi condenado a pagar-lhe dez mil euros de indemnização. Não sei quais são os critérios, as tabelas, as normas nem as práticas habituais neste tipo de casos, mas sei o que são dez mil euros. Palavras para quê?, citando aquele grande clássico da publicidade made in Portugal.