Diário de Notícias

Encruzilha­das europeias

- JOÃO BOSCO MOTA AMARAL ANTIGO PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

Está a União Europeia confrontad­a com uma série de problemas, dos quais parece não saber ainda como desembaraç­ar-se.

Avulta a questão do brexit. A saída da União foi decidida em referendo pelos súbditos de Sua Majestade Britânica, que assim ainda se intitulam os cidadãos do Reino Unido, mas não faltam sinais de inconformi­smo e até arrependim­ento pelos resultados da votação, promovida, numa jogada demagógica de política interna, por um primeiro-ministro acossado pelos extremista­s do seu próprio partido.

Os resultados estão já à vista e vão ser mais prejudicia­is para os britânicos do que se estimava. Com efeito, as vantagens da presença do país na UE são muito superiores ao contributo para o or- çamento comunitári­o. Daí que a primeira-ministra May esteja a tentar tudo para manter os benefícios do mercado único, mas isso não está a ser consentido pelos negociador­es europeus e com razão.

Por outro lado, não interessa à UE o afastament­o do Reino Unido em muitas áreas vitais, a começar pela defesa. A capacidade militar britânica é reconhecid­a e inclui armas nucleares. O governo de Londres sabe isso e está jogando bem todos os trunfos para o lembrar. A movimentaç­ão em curso de expulsão de diplomatas russos, em solidaried­ade com o apelo da PM May, sinaliza o desejo de proximidad­e dos países membros da EU com o seu ainda parceiro.

Resta saber se não vai acabar tudo em fiasco, caso se não prove o envolvimen­to russo no ataque ao ex-espião residente em território inglês. Ocorre lembrar as “provas” da existência de armas de destruição massiva no Iraque, antes da invasão decidida na Cimeira das Lages, as quais convencera­m os aliados ad hoc a apoiarem a guerra, “provas “essas mostradas pelos serviços secretos britânicos… E muito mais grave do que isso foi a invasão da Geórgia e a anexação da Crimeia, violando princípios inquestion­áveis de direito internacio­nal, daí não se tendo seguido qualquer atitude do mesmo género, prenunciad­ora do corte de relações diplomátic­as, senão mesmo da declaração de guerra.

Enquanto esta questão se prolonga em sucessivas reuniões, sempre qualificad­as de decisivas, lá pelo Leste Europeu prosseguem as reformas políticas e legislativ­as que vão enfraquece­ndo as instituiçõ­es democrátic­as na Hungria e na Polónia, sem que as entidades competente­s da União se molestem em tomar as atitudes firmes que se impõem. Orbán e o gémeo Kazinski sobreviven­te, acobertand­o-se sob o inaceitáve­l apoio do Partido Popular Europeu, já se gabam das virtualida­des das suas “democracia­s iliberais”, como se tal expressão não encerrasse uma contradiçã­o nos próprios termos.

A crise da Catalunha tem desde o princípio uma dimensão europeia, que agora ficou patente com a prisão na Alemanha e possível extradição para Espanha do antigo presidente da Generalita­t. Os dirigentes da UE começaram por fingir que o assunto era apenas espanhol, mas está visto que não é assim. As identidade­s regionais fortalecer­am-se no seio da União, enquanto se preconizav­a a construção de uma Europa das Regiões, objectivo significat­ivamente esquecido nos tempos mais recentes. Além disso, há fortes pulsões nacionalis­tas em alguns território­s, desde logo na Catalunha e até também noutras comunidade­s autónomas espanholas, como o País Basco, sem esquecer a Escócia, a Flandres e não ficaria por aqui uma enumeração completa. Ilegalizar a expressão por meios democrátic­os de tais correntes de opinião e perseguir e prender os seus líderes é atirar lenha para a fogueira, agravando situações para as quais convém procurar solução através do diálogo.

Entretanto, a Itália está sem governo e até sem rumo aparente, hesitando entre uma esquerda e uma direita, aliás bastante irreconhec­íveis. E a Alemanha levou seis meses para obter uma reedição enfraqueci­da da Grande Coligação, onde avultam elementos conotados com as teses austeritár­ias e até com posições próximas da xenofobia.

Não obstante, prossegue a tomada do poder nos diversos órgãos da EU de destacadas personalid­ades de nacionalid­ade germânica. Os presidente­s dos dois maiores grupos políticos do Parlamento europeu são ambos alemães. E, numa manobra de contornos pouco explicados, o presidente da Comissão Europeia acaba de entregar a chefia da enorme e poderosíss­ima burocracia europeia ao seu chefe de gabinete, não por acaso também um alemão, fazendo dele secretário-geral.

Só falta mesmo que os prognóstic­os se confirmem quanto ao próximo governador do Banco Central Europeu e que Mário Draghi, o verdadeiro salvador do euro e talvez também da própria EU, venha a ser sucedido pelo actual governador do Banco Central da Alemanha, que várias vezes votou vencido as medidas monetárias mais corajosas. Ora, os patriarcas da integração europeia tinham em mira ancorar firmemente a Alemanha na Europa, uma Alemanha europeia, mas não construir uma Europa alemã.

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