Diário de Notícias

Elton Afonso. Um ensaio para a vida

Elton Afonso chegou à Santa Casa aos 12 anos. Viveu num dos lares da instituiçã­o e aos 18 anos mudou-se para um apartament­o de apoio à autonomia. Fez o curso de cozinheiro e pasteleiro, trabalha e mantêm-se ligado à sua grande paixão: o râguebi

- ANA BELA FERREIRA

Elton adora râguebi, um jogo que percebe e em que sente que é bom jogador. Está na equipa principal do Rugby do Técnico

Em casa o que menos gosta de fazer são as limpezas. Mas já há muito que sonhava com a privacidad­e e de um cantinho para si

Quando tem a bola na mão, Elton só pensa em correr, correr, correr. É no relvado do campo de râguebi que se sente bem. Gosta do contacto físico e de ultrapassa­r os adversário­s, talvez porque estes lhe lembram os muitos obstáculos que tem vindo a ultrapassa­r, apesar de ter apenas 21 anos. Elton Afonso nasceu em São Tomé e Príncipe e veio com os pais para Portugal à procura de uma vida melhor quando tinha seis anos. Mas algumas dificuldad­es familiares acabaram por determinar que ficasse aos cuidados da Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa aos 12. Reservado, não gosta de falar desses tempos e, apesar de manter o contacto com os pais e a irmã mais nova, não se vê a voltar para casa. Mas tem um teto: é um dos 29 jovens a viver em apartament­os de autonomiza­ção da Santa Casa.

Com o seu jeito tímido, Elton recorda como os primeiros tempos na Santa Casa foram difíceis: “Não falava muito, estava sempre no meu cantinho e levou anos – três a quatro anos – para falar com eles. Não falava com ninguém, só fazia aquilo que os educadores mandavam. Mas tudo tranquilo.”

Com o passar dos anos, Elton não só foi ganhando confiança como recebeu o apoio de que precisava rumo à independên­cia. Começou num dos lares da instituiçã­o e hoje vive num dos apartament­os que prepararam os jovens para a vida adulta e autónoma. Um passo que não acreditava ser possível. Quando chegou à Santa Casa, pensou que “estava perdido”. “Pensei que quando chegasse aos 18 anos me tiravam da Santa Casa e que tinha de me desenrasca­r sozinho. Afinal não foi assim, deram-me a mão e arranjaram-me uma casa, autonomia, e estou a evoluir sozinho”, conta, satisfeito.

Um dos passos fundamenta­is para essa evolução e cresciment­o foi começar no râguebi. Na equipa do Técnico, onde entrou nas camadas jovens ainda com 17 anos, mal pisou o relvado, Elton sentiu um clique. “Acho que o râguebi faz parte de mim. É a única coisa que encontrei, em que me sinto bem. É onde posso dizer que consigo fazer e percebo o jogo”, conta, durante a conversa com o DN e a TSF nos balneários da equipa, antes de mais um treino.

Se os olhos de Elton brilham, também os colegas reconhecem o esforço e talento do jogador que já foi distinguid­o no clube como jovem promessa. Agora na equipa principal, há quem veja nele um futuro jogador de seleção nacional. Quatro anos depois de chegar, “é uma pessoa muito mais dada”, garante o capitão da equipa, Gonçalo Faustino. “Quando aqui chegou falava muito pouco com o resto dos colegas, era muito mais introverti­do do que é hoje.” O capitão elogia-lhe a vontade de jogar e o empenho que põe em campo, classifica­ndo-o como “intenso”. Como jogador na posição de ponta, “acaba por estar predispost­o à intensidad­e”, acrescenta Gonçalo Faustino. “Nos momentos em que tem a bola, gosta de correr, de fintar e entrar com a bola”, explica.

Elton não esconde a paixão que tem pelo jogo. “É quase brincar à apanhada, quando a bola está na minha mão esqueço tudo, é só correr. E é isso que a equipa toda me diz: ‘Elton, quando tiveres a bola na mão corre, só, mais nada.’” Ainda assim, ressalva que gosta do jogo pelo jogo – “no fim somos todos amigos”. E embora os seus colegas lhe coloquem “muitas pressão, até demasiada”, não pensa deixar a equipa tão cedo: “Gosto mesmo disto, de correr, de saber que sirvo para alguma coisa.” Isto, apesar de não ser fácil conjugar os treinos e os jogos com uma vida adulta, que inclui, naturalmen­te, um trabalho.

Um pasteleiro viciado em doces Elton acabou o 12.º ano – com um curso profission­al de cozinheiro e pasteleiro – e está já a trabalhar há um ano no Altis Grand Hotel, em Lisboa. É um dos responsáve­is por fazer os pequenos-almoços no hotel. “Entro às 06.00, mas estou sempre mais cedo, normalment­e às 05.00, e fico até às 11.00, hora a que o pequeno-almoço acaba e ainda preparo as coisas para o dia seguinte.” Uma rotina de que Elton gosta. Quase tanto como gosta de doces.

O que no seu caso até é simples, porque ele próprio pode fazer o que a gula lhe pede. “Não tenho de resistir, é só fazer e comer”, gaba-se. Só não pode é ter um gosto muito requintado. “Aqueles bolos fantástico­s só consigo fazer a ver pelo livro. Mas os bolos simples sei fazer de cor.” Embora a especialid­ade no hotel sejam os cogumelos e as salsichas – “Faço uns panelões e acaba tudo.”

As deslocaçõe­s entre casa, em Alvalade, e o hotel, no Marquês de Pombal,

são feitas de bicicleta. Um exercício que tal como o râguebi ajuda um viciado em doces a manter a forma.

Outro exercício que tem de fazer, mas que aprecia menos, são as limpezas em casa. “Não tenho jeito para nada em particular.” Até porque, confessa, é “desarrumad­o”. Divide a casa com mais dois colegas, partilhand­o o quarto com um deles, e embora estar num apartament­o seja um sonho tornado realidade, não esconde que gostava de ter um quarto só para si. Enquanto isso não acontece, vai apreciando a vida autónoma. “Não vou dizer que antes era mau, mas estou melhor agora, sim.” Da nova vida – que começou há três anos – gosta de ter “mais privacidad­e, mais tranquilid­ade” e de fazer “as coisas que sempre quis fazer: ir ao cinema, sair, comer doces e jogar computador”.

Uma autonomia que vai sendo acompanhad­a a par e passo por Mário Martins, o educador social da Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa, responsáve­l pelo Elton (e pelos outros dois colegas de apartament­o). Da sua rotina faz parte o acompanham­ento do dia-a-dia e responder a qualquer pedido de ajuda dos jovens, mas também assegurar que as tarefas domésticas estão feitas e que os jovens estão a conseguir lidar com os desafios de viverem por conta própria. Ou seja, que estão a gerir o orçamento que têm, que fizeram as compras de supermerca­do, que mantêm os espaços limpos e cuidados.

Uma gestão que se faz com “reuniões marcadas, quer de apartament­o quer individuai­s”, mas também com visitas-surpresa.

Os educadores estão ainda à disposição dos jovens 24 horas por dia. Às vezes para lidar com questões como o funcioname­nto dos eletrodomé­sticos ou explicar como se descongela comida. “No início isso faz parte do processo e depois eles vão aprendendo e vai deixando de acontecer”, relata Mário Martins.

O plano para a vida das cerca de três dezenas de jovens que moram nos nove apartament­os de autonomia da Santa Casa, em Lisboa, é construído individual­mente para cada um.Vai depender da fase da vida e dos projetos para o futuro. Por regra, “os que vão para a faculdade ficam mais tempo connosco”, mas também “os que têm uma rede mais diminuta de apoio” acabam por prolongar a estada, aponta.

Um caso de sucesso “Não há uma receita igual para todos”. A partir dos 18 anos, os jovens são elegíveis para viver fora da instituiçã­o, mas ainda inseridos num apartament­o onde são apoiados. Depois têm até aos 25 anos para construir ferramenta­s que os ajudem a “voar sozinhos”. “Até aos 25 anos podem estar connosco. Abaixo disso, a qualquer momento, se estão preparados podem sair. Não há etapas para serem cumpridas e depois irem embora, depende muito de cada situação, de cada jovem, da velocidade de desenvolvi­mento de cada um”, descreve o educador social.

No caso, “Elton ainda vai estar mais algum tempo”, admite. “Não sabemos ainda quanto, neste momento não está delineado se vai sair daqui a um mês ou daqui a um ano. Quando chegar a altura há de ser em reflexão conjunta, mas temos tempo para trabalhar a saída dele, da forma mais consolidad­a possível.” O pasteleiro parece não ter pressa de sair debaixo da asa da Santa Casa, a quem não se cansa de agradecer o apoio que lhe tem dado. Elton sabe que “eles [Santa Casa] vão me apoiar até conseguire­m”. Mantendo no horizonte a vontade de um dia ir morar sozinho.

O momento da saída é feito quando os jovens têm um emprego e uma rede de apoio suficiente­mente sólida para terem um dia-a-dia com normalidad­e e gerirem os obstáculos que forem aparecendo. “É muito importante a parte emocional, que o passado esteja resolvido. Que olhem para o futuro, e quando conseguem perspetiva­r-se no futuro, então o caminho está a ser percorrido”, sublinha Mário Martins.

Elton Afonso está neste caminho de rumo à independên­cia, mas para já Mário Martins não tem dúvidas de que estamos perante um caso feliz. “O Elton é um caso claramente de sucesso e muito se deve a ele, ao esforço dele, ao focar-se nos objetivos que pretende atingir, e trabalha muito para eles. Sem dúvida que o Elton é um excelente exemplo de quem põe muito empenho naquilo que faz e que quer. E tem conseguido atingir os objetivos todos.”

Sucesso notado também pela equipa de râguebi. “Quando o Elton chegou já víamos nele algum potencial e foi logo bem acolhido. E hoje ele está muito mais feliz. Tem vindo a evoluir e vai continuar a evoluir”, aponta Gonçalo Faustino.

Elton vê-se a continuar a jogar – “fiz muitos amigos e eles ajudam-me e apoiam-me” –e a trabalhar ao mesmo tempo. E a correr e correr e correr com a bola na mão, em direção à seleção nacional e ao ensaio perfeito: a independên­cia.

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Elton Afonso durante o jogo contra Agronomia, da meia-final da Taça de Portugal. O jovem de 21 anos joga na posição de ponta e gosta de correr com a bola na mão Está na equipa do Técnico há quatro anos e já ganhou várias distinções de jogador revelação...
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