Ronaldo, Magritte e Zuckerberg
Vejo e revejo as imagens do golo histórico de Cristiano Ronaldo na baliza de Gianluigi Buffon. Em boa verdade, já não são tratadas como imagens, antes como avatares utópicos. Utopia científica, uma vez que a geometria do salto nos é apresentada como o consumar de uma depuração religiosa do próprio corpo. Utopia nacional, com os feitos de Ronaldo a serem mais uma vez proclamados como imaculada, porventura compulsiva, encarnação da nossa portugalidade.
Dir-se-ia que, neste tempos de internet, pontuados por delírios político-futebolísticos em forma de tweet, a civilização global em que vivemos passou a dispensar o simples reconhecimento das imagens como... imagens. Esquecida está a pedagogia austera de René Magritte quando, em 1929, pintou um enorme e garboso cachimbo, colocando por baixo o lendário axioma: “Isto não é um cachimbo.” Lição rudimentar, que talvez devesse ser ensinada a todas as crianças: se é isto não é um cachimbo, então o que é?... Pois bem, é a imagem de um cachimbo.
As atribulações em torno do Facebook aí estão, precisamente, como reflexo da nossa demissão de pensamento. No princípio, dominou a visão pueril dessa nova forma de “socialização”: cada ser humano era convocado para partilhar a intimidade (do parto do primeiro filho ao sofrimento de uma doença terminal) com todos os cidadãos do mundo. Os ideólogos da “personalização” quiseram convencer-nos de que essa “transparência” absoluta seria o paraíso desenhado como mapa de infinitos links. Agora, anda tudo muito preocupado, incluindo o Sr. Mark Zuckerberg, porque as coisas não funcionam exatamente assim...
Em 2010, David Fincher realizou uma obra-prima sobre o nascimento do Facebook, intitulada A Rede Social. A partir de um genial argumento de Aaron Sorkin (que lhe valeu um Óscar), Fincher mostrava algo de muito básico. A saber: na origem do Facebook está um conceito de negócio. E expunha uma decisiva componente cultural: as relações humanas deixavam de ser vividas como trocas de infinita diversidade para serem geridas por um espaço “comunitário” em que a atribuição (ou não) de um polegar ao alto tornava todos os cidadãos, de todos os recantos do planeta, banalmente iguais.
É essa cultura da igualdade compulsiva, socialmente virtual, que está em discussão. A sua urgência política é uma questão nuclear do presente, nem que seja para relançarmos a frase do cartaz de A Rede Social, escrita em função das estatísticas de 2010: “Não se conseguem 500 milhões de amigos sem se fazer alguns inimigos.”