Cultura e esperança
Há agentes – e não são poucos – que defendem a lei nuns dias e, de facto, cospem nela noutros
Do debate sobre os critérios para a atribuição de verbas à cultura houve pelo menos uma boa novidade: ninguém negou a necessidade desses apoios. Não é coisa pouca. Aparentemente, já ninguém com responsabilidades políticas nega a importância do papel do Estado e de outras entidades públicas na atividade cultural.
Não foi mesmo nada mau ver que os partidos não embarcaram na conversa populista e saloia do “tira-se dinheiro aos pobres para dar a companhias de teatro com meia dúzia de espectadores” – como se a exploração de novos caminhos, a procura de novas expressões artísticas nascessem com casas apinhadas de gente ou como se a não busca de novos caminhos não originasse um academismo definhante. E, infelizmente, basta andarmos pelas redes sociais e pelas caixas de comentários para saber das potencialidades eleitorais deste tipo de discurso.
Admito poder estar a ser demasiado otimista, mas já seria minimamente satisfatório que os representantes do povo estivessem cientes do carácter imprescindível do financiamento à cultura, sobretudo num país com um mercado muito pequeno e com assimetrias regionais tão vincadas.
Claro que há um contraponto a tudo isto: ficou claro que ninguém ligou peva ao assunto quando houve a discussão pública do modelo em vigor – é de justiça lembrar que os agentes culturais participaram ativamente na construção do atual quadro de apoio. O assunto surgiu porque algumas entidades diretamente interessadas protestaram. Ou seja, em tese, os nossos representantes concordam que a atividade deve ser financiada, que não se pode prescindir dos apoios de entidades públicas, mas os diversos atores políticos não acham o assunto prioritário, pelo menos grande parte não se incomodou sequer em enunciar o mínimo pensamento – Catarina Martins, por exemplo, apenas disse que se devia repensar o modelo.
Os partidos aproveitaram a polémica como arma de arremesso para o jogo político sem que se tenha ouvido uma única proposta alternativa ou mesmo uma crítica bem estruturada. Nem sequer se ouviu o velho debate sem sentido sobre se se devem aplicar recursos, por definição escassos, a apoiar mais o património ou a produção cultural. E afirmo sem sentido porque não me parece sequer digno de discussão que se ponha em diferentes pratos da balança a preservação da memória e a sua construção. Uma comunidade, para se manter, não pode prescindir da memória e não pode deixar de a criar para o futuro.
Já a questão de o modelo de financiamento poder contar mais com a participação de privados – também esquecida – faz todo o sentido, quer seja através de subsídios fiscais ou de outra forma. O que convém lembrar é que um país pobre e com pouquíssima tradição no apoio à atividade cultural através do mecenato tem um longo caminho a percorrer nessa direção e não pode prescindir de um grande contributo estatal.
Apesar de não ter visto as afirmações antiapoios que aconteceram noutros tempos e de ter sido claro que ninguém nega a imprescindibilidade do financiamento à cultura, é claro que estamos muito longe de ter uma classe política que coloque no centro do discurso político as questões da cultura. Não me parece que seja evidente para os nossos representantes que um país que não investe fortemente na produção cultural é um país condenado, é um país que se desenlaça, é um país que perde referências, é um país que não cria história comum, é um país que perde o norte. A aproximação à cultura é um aspeto vital no combate à iliteracia, à procura do conhecimento que é arma importante até aos nossos conhecidos défices de produtividade. Um povo mais culto é também um povo mais produtivo. No mesmo sentido, a produção cultural é um aspeto essencial na coesão territorial. É um polo aglutinador de comunidades, de fixação de pessoas num dado território.
Talvez o debate e os protestos que surgiram sirvam para um novo olhar, para um debate, finalmente, sério e construtivo sobre o assunto. Não tenho grandes esperanças, mas é a fé que nos salva. A vigarice policial “A PSP já tem 16 sindicatos e 36 mil dias de folgas para os dirigentes” é o título de uma notícia do DN de quarta-feira. No corpo da notícia fica claro que a esmagadora maioria destes sindicatos só têm um propósito: a fraude à lei. Os membros desses sindicatos são também dirigentes e assim podem
usufruir da prerrogativa de terem quatro dias por mês de folga para exercerem trabalho sindical. A pouca vergonha é tamanha que um com o nome de Organização Sindical dos Polícias tem 459 dirigentes e delegados para 451 associados...
Diz o dirigente do sindicato, de longe, mais representativo e que funciona sem o género de vigarices descritas que “os mais de 20 anos de luta para que a PSP tivesse sindicatos sejam agora os próprios polícias a fazer que, ignorando totalmente o interesse do coletivo, essa luta e essa credibilidade sejam destruídas”. Lamento, mas a situação é muitíssimo mais grave. Há agentes – e não são poucos – que defendem a lei nuns dias e, de facto, cospem nela noutros. Polícias que apanham vigaristas de manhã e fazem vigarices de tarde.
Tudo isto se passa com a complacência do poder político que, pela notícia, ficamos a saber ainda não teve agenda para tratar do assunto apesar de a situação já não ser nova. Mas que fique claro, tal como não culpo em primeira mão os polícias pelos bandidos que não conseguem apanhar, também não culpo os políticos por existirem polícias que cometem poucas vergonhas destas.