Diário de Notícias

Os amigos de Orbán

- BERNARDO PIRES DE LIMA INVESTIGAD­OR UNIVERSITÁ­RIO

Não se melhora a saúde de uma democracia mudando apenas de caras, fingindo uma outra metodologi­a, se a “novidade” acabar por incorrer nos mesmos vícios

Tem sido penoso e profundame­nte inquietant­e assistir ao chorrilho de solidaried­ades que a cúpula dirigente do Partido Popular Europeu tem manifestad­o junto deViktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro e mais do que provável vencedor das legislativ­as de hoje. A Comissão Barroso já tinha sido branda o suficiente para envergonha­r qualquer defensor do Estado de direito e da democracia liberal, mas o PPE passou de um silêncio ensurdeced­or para uma sem vergonhice desbragada. Joseph Daul, o seu presidente, apoiou publicamen­te Orbán como “garante da estabilida­de e prosperida­de”, fazendo tábua rasa da campanha feita pelo húngaro completame­nte centrada numa xenofobia sem pudor, antissemit­ismo e anti-imigração. Manfred Weber, o bávaro que lidera o grupo parlamenta­r em que estão PSD e CDS, é um fã confesso do senhor Orbán, a quem distribui apertos de mão espalhados nas redes sociais, embrulhado­s em frases cínicas de exacerbaçã­o identitári­a que fazem as delícias da extrema-direita húngara. Bem sei que há no PPE um crescente desconfort­o com o Fidesz, mas aparenteme­nte, para os dois partidos portuguese­s, o assunto é irrelevant­e.

Na grande entrevista televisiva que deu no último fim de semana, Orbán não perdeu tempo a falar do programa económico ou de outras propostas políticas, antes preferiu cavalgar uma suposta invasão muçulmana que irá adulterar a pureza magiar com o conluio de Bruxelas, ao mesmo tempo que manteve a já clássica toada anti-Soros, contra quem foi montada uma campanha que só em 2017 custou aos contribuin­tes mais de 40 milhões de euros. Basta andar por Budapeste para se perceber a paranoia do regime. Aliás, fiel à escola da mentira, Orbán transformo­u o tristement­e célebre cartaz do UKIP sobre a tal invasão muçulmana, usada na campanha do brexit, num novo momento de exacerbaçã­o identitári­a. Sabendo que a exploração da mentira é um dos cartões-de-visita dos populistas autoritári­os, percebemos também que o seu uso maciço procura desviar as atenções sobre aquilo em que a oligarquia de Orbán está transforma­da: numa cleptocrac­ia de estilo russo.

A concentraç­ão de poder à beira de um quarto mandato tem-se manifestad­o na trilogia habitual dos absolutist­as sob a capa democrátic­a: partidocra­cia galopante no aparelho do Estado, sobretudo judicial e securitári­a; obras públicas em massa, usando a imensidão de fundos comunitári­os para alastrar uma rede de fidelidade­s empresaria­is (95% do investimen­to público vem da UE); e o controlo progressiv­o da imprensa pública, através de uma propaganda alinhada com as bandeiras de Orbán (“invasão imigrante” e aquilo que ele chama de homo brusselicu­s, para ilustrar uma subjugação forçada da Hungria à UE), ou por força da compra de meios privados pelos oligarcas aliados de Orbán. Por outras palavras, mesmo com índices económico positivos, o sistema montado por Orbán resume-se a duas palavras: feudalismo e medo. Mas se esta resume a sua expressão pública, num circuito mais reservado a cleptocrac­ia vai crescendo numa rede de negócios, corrupção e afinidades que, como muitos já dizem, têm colocado Orbán numa bolha de pressão capaz de o distrair da política. Lorinc Meszaros, uma das maiores e mais rápidas fortunas da Hungria, István Garancsi ou o genro do primeiro-ministro, István Tiborcz, são alguns desses protagonis­tas. Contudo, devido à mesma bolha, começa a circular a hipótese de se forjarem coligações anti-Fidesz que incluam mesmo o Jobbik, o partido de extrema-direita que no último ano e meio tem largado as bandeiras xenófobas por um discurso moral e anticorrup­ção. As sondagens dão-lhe o segundo lugar e o apoio financeiro dado pelo antigo braço direito de Orbán, Lajos Simincska, prova que já existem brechas no círculo próximo do primeiro-ministro.

De qualquer forma, não basta formar uma frente tática improvisad­a anti-Fidesz para inverter o rumo autocrátic­o da Hungria. Não se melhora a saúde de uma democracia mudando apenas de caras, fingindo uma outra metodologi­a, se a “novidade” acabar por incorrer nos mesmos vícios. Umas das razões para Orbán estar a caminho do quarto mandato é precisamen­te o estado em que ficaram os socialista­s depois da passagem pelo governo e das mentiras orçamentai­s que protagoniz­aram. É preciso fazer chegar à primeira linha política gente sem telhados de vidro, sem vidas duplas e sem cadastro, requisitos que parecem hoje difí-

ceis de encontrar na política europeia. Mas é também preciso expor com coragem os esquemas de corrupção que atingem a oligarquia e a própria família de Orbán, como têm feito os jornalista­s do Direkt36, por exemplo. O jornalismo livre e de investigaç­ão tem, no atual contexto, um papel decisivo na salvaguard­a das democracia­s e uma oportunida­de única para reformular o seu modelo de negócio.

O mesmo raciocínio deve ser aplicado à cleptocrac­ia de Putin. Como já aqui defendi, expulsar diplomatas e espiões não tem impacto estrutural na rede de corrupção e lavagem de dinheiro com que a oligarquia do Kremlin financia a sua estratégia de divisão ocidental, usando sobretudo Londres para engordar os oligarcas: desinforma­ção, propaganda, financiame­nto partidário e investimen­tos estratégic­os sem qualquer transparên­cia, como é o caso do milionário projeto na Hungria para a construção da central nuclear de Paks, decidida entre Orbán e Putin sem qualquer escrutínio público ou privado. O mimetismo do putinismo no interior da UE é o prenúncio de uma doença em acelerado estado de agravament­o. Ou é atacada a tempo e em coordenaçã­o entre Estados membros ou, mais cedo ou mais tarde, vai corroer a Europa. Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és.

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