Os amigos de Orbán
Não se melhora a saúde de uma democracia mudando apenas de caras, fingindo uma outra metodologia, se a “novidade” acabar por incorrer nos mesmos vícios
Tem sido penoso e profundamente inquietante assistir ao chorrilho de solidariedades que a cúpula dirigente do Partido Popular Europeu tem manifestado junto deViktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro e mais do que provável vencedor das legislativas de hoje. A Comissão Barroso já tinha sido branda o suficiente para envergonhar qualquer defensor do Estado de direito e da democracia liberal, mas o PPE passou de um silêncio ensurdecedor para uma sem vergonhice desbragada. Joseph Daul, o seu presidente, apoiou publicamente Orbán como “garante da estabilidade e prosperidade”, fazendo tábua rasa da campanha feita pelo húngaro completamente centrada numa xenofobia sem pudor, antissemitismo e anti-imigração. Manfred Weber, o bávaro que lidera o grupo parlamentar em que estão PSD e CDS, é um fã confesso do senhor Orbán, a quem distribui apertos de mão espalhados nas redes sociais, embrulhados em frases cínicas de exacerbação identitária que fazem as delícias da extrema-direita húngara. Bem sei que há no PPE um crescente desconforto com o Fidesz, mas aparentemente, para os dois partidos portugueses, o assunto é irrelevante.
Na grande entrevista televisiva que deu no último fim de semana, Orbán não perdeu tempo a falar do programa económico ou de outras propostas políticas, antes preferiu cavalgar uma suposta invasão muçulmana que irá adulterar a pureza magiar com o conluio de Bruxelas, ao mesmo tempo que manteve a já clássica toada anti-Soros, contra quem foi montada uma campanha que só em 2017 custou aos contribuintes mais de 40 milhões de euros. Basta andar por Budapeste para se perceber a paranoia do regime. Aliás, fiel à escola da mentira, Orbán transformou o tristemente célebre cartaz do UKIP sobre a tal invasão muçulmana, usada na campanha do brexit, num novo momento de exacerbação identitária. Sabendo que a exploração da mentira é um dos cartões-de-visita dos populistas autoritários, percebemos também que o seu uso maciço procura desviar as atenções sobre aquilo em que a oligarquia de Orbán está transformada: numa cleptocracia de estilo russo.
A concentração de poder à beira de um quarto mandato tem-se manifestado na trilogia habitual dos absolutistas sob a capa democrática: partidocracia galopante no aparelho do Estado, sobretudo judicial e securitária; obras públicas em massa, usando a imensidão de fundos comunitários para alastrar uma rede de fidelidades empresariais (95% do investimento público vem da UE); e o controlo progressivo da imprensa pública, através de uma propaganda alinhada com as bandeiras de Orbán (“invasão imigrante” e aquilo que ele chama de homo brusselicus, para ilustrar uma subjugação forçada da Hungria à UE), ou por força da compra de meios privados pelos oligarcas aliados de Orbán. Por outras palavras, mesmo com índices económico positivos, o sistema montado por Orbán resume-se a duas palavras: feudalismo e medo. Mas se esta resume a sua expressão pública, num circuito mais reservado a cleptocracia vai crescendo numa rede de negócios, corrupção e afinidades que, como muitos já dizem, têm colocado Orbán numa bolha de pressão capaz de o distrair da política. Lorinc Meszaros, uma das maiores e mais rápidas fortunas da Hungria, István Garancsi ou o genro do primeiro-ministro, István Tiborcz, são alguns desses protagonistas. Contudo, devido à mesma bolha, começa a circular a hipótese de se forjarem coligações anti-Fidesz que incluam mesmo o Jobbik, o partido de extrema-direita que no último ano e meio tem largado as bandeiras xenófobas por um discurso moral e anticorrupção. As sondagens dão-lhe o segundo lugar e o apoio financeiro dado pelo antigo braço direito de Orbán, Lajos Simincska, prova que já existem brechas no círculo próximo do primeiro-ministro.
De qualquer forma, não basta formar uma frente tática improvisada anti-Fidesz para inverter o rumo autocrático da Hungria. Não se melhora a saúde de uma democracia mudando apenas de caras, fingindo uma outra metodologia, se a “novidade” acabar por incorrer nos mesmos vícios. Umas das razões para Orbán estar a caminho do quarto mandato é precisamente o estado em que ficaram os socialistas depois da passagem pelo governo e das mentiras orçamentais que protagonizaram. É preciso fazer chegar à primeira linha política gente sem telhados de vidro, sem vidas duplas e sem cadastro, requisitos que parecem hoje difí-
ceis de encontrar na política europeia. Mas é também preciso expor com coragem os esquemas de corrupção que atingem a oligarquia e a própria família de Orbán, como têm feito os jornalistas do Direkt36, por exemplo. O jornalismo livre e de investigação tem, no atual contexto, um papel decisivo na salvaguarda das democracias e uma oportunidade única para reformular o seu modelo de negócio.
O mesmo raciocínio deve ser aplicado à cleptocracia de Putin. Como já aqui defendi, expulsar diplomatas e espiões não tem impacto estrutural na rede de corrupção e lavagem de dinheiro com que a oligarquia do Kremlin financia a sua estratégia de divisão ocidental, usando sobretudo Londres para engordar os oligarcas: desinformação, propaganda, financiamento partidário e investimentos estratégicos sem qualquer transparência, como é o caso do milionário projeto na Hungria para a construção da central nuclear de Paks, decidida entre Orbán e Putin sem qualquer escrutínio público ou privado. O mimetismo do putinismo no interior da UE é o prenúncio de uma doença em acelerado estado de agravamento. Ou é atacada a tempo e em coordenação entre Estados membros ou, mais cedo ou mais tarde, vai corroer a Europa. Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és.