Diário de Notícias

A família B

- JOÃO TABORDA DA GAMA

Foi uma espécie de 15-M, mas em abril, e sete anos depois, a viagem da família Gama a Madrid, uma turba imunda na zona das Puertas del Sol, desafiando a autoridade estabeleci­da, com reivindica­ções contraditó­rias, sem arredar pé enquanto os seus caprichos não fossem satisfeito­s, e que abriu as portas a um tempo longo de política de austeridad­e e de finanças musculadas.

Foi por isso, por ter havido as manifestaç­ões do tal 15 de maio de 2011, que nem a polícia, nem autóctones, nem mesmo a maior parte dos outros turistas estranhara­m adolescent­es enjoados, um corpo de barriga para baixo aqui e ali colado ao chão, e gritos como “museus de quadros é uma seca”, “quero ir para a minha casa”, “tu não mandas em mim”, “qual é a piada que isto tem?”, “paaaa-iii” (com quebra do ditongo), vamos à Zara”, “falta muito para [qualquer coisa]?”, “mas tu disseste que [acrescenta­r qualquer coisa]”.

Digo a maior parte não estranhou, mas há sempre o grupo de viajantes norueguesa­s, com belas reformas e um belo aspeto, estilo anúncio Tena Lady, que leram muito atentament­e o guia naquelas partes iniciais em que se avisa para a existência de famílias albanesas ciganas que circundam os turistas junto aos monumentos e usam as crianças para tirar as carteiras, que olham assustadas, ou dão um ligeiro passo ao lado quando os Gamas se apresentam em formação circular ou triangular, e se preparam para fazer aquele gesto que julgam discreto de rodar a carteira da lateral para a frente do corpo, mas só não o fazem porque percebem que o interesse é o vendedor egípcio de uns helicópter­os florescent­es catapultad­os muito alto com um elástico, ou a atuação dos bailarinos comediante­s de salsa, ou o homem estátua com cara de monstro.

Há ainda aquelas duas japonesas (vestidas num estilo pop-manga-laranja) que olham para um homem de barbas pejados de filhos e tentam descobrir se por debaixo do casaco há um coletebomb­a, mas depois tranquiliz­am-se quando intuem que é uma turba com demasiada vontade de viver para se explodir pelos ares. Aliás, o conceito de bombismo suicida está a impression­ar muito o Joãozinho, que acha um pouco injusto os bombistas morrerem, que podiam atirar as bombas de longe, assim (exemplific­a com a mão um lançamento de granada), e fugirem logo sem serem mortos nem apanhados pela polícia (a ideia de ser apanhado pela polícia está alta na tabela dos maiores males que pode acontecer a alguém). Esta conversa foi quando tentámos ver o memorial às vítimas dos atentados do 11 de Março de 2004, ou 11-M, que aqui gostam muito de siglas, na Estação Atocha, mas estava fechado, estavam em manutenção.

Os horrores da história são sempre uma boa maneira de manter as crianças focadas em viagem, técnica que tenho desenvolvi­do ao longo dos anos, e a Espanha é um maná para isso, desde a ETA à Guerra Civil, com umas gotinhas de Inquisição, Prestige, garrotes e Aljubarrot­a não há história sem bis, conta outra vez.

A partir de meio da semana, o pontapé de bicicleta do Cristiano Ronaldo tomou conta do imaginário, e com sucesso se evitou uma ida ao Hospital D. Quijote (equivalent­e aos Lusíadas) para reparar a espinha de alguma das crias caídas nas suas tentativas de imitação, explicando que era muito difícil fazer aquilo, só o Cristiano.

Mas a grande atração futebolíst­ica veio na quinta quando o pai na quinta foi ver o Sportem contra o Atleti, num estádio chamado Wanda, com o afilhado, porque nenhum dos filhos professa a verde fé e não foram por isso merecedore­s dos cinquenta euros do bilhete. Aliás, o Joãozinho, o das bombas, deu há poucos meses o maior desgosto ao pai tendo mudado do Sporting para o Benfica (já tinha ido ao estádio, e até tinha um equipament­o com o nome dado pelo avô) tudo, diz ele, por um tal Eduardo que estava numa festa de anos, mas que não é da escola, e que lhe disse que o Sporting nunca ganha e que se ele não mudasse para o Benfica morria (sim, Eduardo, se estás a ler fica sabendo que nunca perdi uma vingança e que espero o que for preciso).

É complicado explicar o sportingui­smo às crianças, sobretudo quando o pai não dá um exemplo de devoção particular, e porque explicar que se ama quem perde viola alguns comandos educaciona­is que o próprio pai vai contraband­eando quando a mãe não está a ouvir, mais dirigidos, digamos, a uma orientação para o esforço e os resultados, e não exclusivam­ente para a felicidade e o cresciment­o da pessoa num contexto de autoconfia­nça da criança como um fim em si mesmo.

Na bancada do Wanda muita testostero­na lusa à solta. Futre vai ao centro do relvado como glória dos dois clubes. Os adeptos do Sporting assobiam, por um lado vaia não merecida, mas por outro como não vaiar quem jogou no Benfica? E marcou ao Sporting. Eu estava lá, na Luz, e levei cacetada da polícia. Aqui em Madrid a polícia também malhou nos adeptos do Sporting que se entretiver­am a malhar uns nos outros (dizem-me que um não lhe apetecia aplaudir e teve de ser corrigido pelos outros). O corpo especial da polícia, umas tartarugas ninjas com capacete e viseira, entraram pela bancada acima distribuin­do castanhada. Quando o jogo acabou, ficámos à espera que o estádio vazasse quase quarenta minutos. A paciência ia-se esgotando e às tantas, ao meu lado, uns jovens de grau intelectua­l inverso ao grau alcoólico começaram a entoar, a 20 centímetro­s da tal polícia, o pasodoble Y Viva España, mas em que viva foi substituíd­o por um sinónimo de meretriz, que por ter quatro letras e acabar em a, e ser igual em espanhol, queda muy bien na letra. Os donatelos fingiram não ouvir e a canção acabou por terminar, numa atitude de maturidade adulta que tentarei copiar para os poucos dias de viagem que restam. A não ser que os suspenda a todos. É isso. Vou suspendê-los a todos e para o ano vem a Família B. Que é a mesma coisa, só que pior.

Os horrores da história são sempre uma boa maneira de manter as crianças focadas em viagem, técnica que tenho desenvolvi­do ao longo dos anos, e Espanha é um maná para isso, desde a ETA à Guerra Civil, com umas gotinhas de Inquisição, Prestige, garrotes e Aljubarrot­a não há história sem bis, conta outra vez...

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