Diário de Notícias

RIBEIRO DE MENESES: “OS PORTUGUESE­S NÃO GOSTAVAM DA GUERRA DAS TRINCHEIRA­S”

- LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Professor universitá­rio na Irlanda, Filipe Ribeiro de Meneses esteve em Portugal para lançar o seu De Lisboa a La Lys (D. Quixote) e conversou com o DN sobre a célebre batalha que aconteceu faz amanhã cem anos. Um pormenor curioso serviu de ponto de partida para a entrevista: o avô Mário combateu em La Lys e quando a família desconheci­a o seu paradeiro o nosso jornal, na edição de 15 de maio de 1918, publicou a foto do oficial, que pouco depois se soube ter sido feito prisioneir­o pelos alemães. Escreveu este livro sobre Portugal na Primeira Guerra Mundial agora que faz cem anos de La Lys. Um avô seu esteve lá naquele 9 de abril. O que sabe desse avô e da participaç­ão dele na batalha? Sei muito sobre o meu avô, mesmo assim, felizmente. Uma vez capturado, começou a escrever um diário. Que voltou atrás e contou tudo o que se tinha passado desde que chegou a França. E sei também através do meu pai que com ele conviveu. Havia uma grande diferença de anos entre os dois, o meu avô tinha quase 60 anos quando o meu pai nasceu. E morreu quando o meu pai era adolescent­e. Mas há toda uma série de conversas que tiveram e que me são transmitid­as. O meu avô era oficial e por isso há também o registo de toda a sua carreira militar. Esse testemunho pessoal confirma aquela ideia de que os portuguese­s estavam mal preparados? Mas também que aquele ataque alemão era indefensáv­el? O que eu sei, através dos escritos dele e do que me contaram, dá ideia de uma terrível hecatombe. E não é necessaria­mente a questão de estar mal armado ou mal treinado. Tem que ver com a forma inovadora como o exército alemão começou a atacar já em 1918. Os portuguese­s em França foram aprendendo a fazer a guerra das trincheira­s, equipados e treinados pelos britânicos. Tal como os britânicos e os franceses são pura e simplesmen­te surpreendi­dos pela maneira muito mais flexível como o exército alemão ataca. Os alemães já não esperam para começar a infiltrar tropas nas trincheira­s. Escolhem precisamen­te os pontos da linha da frente em que as unidades convergem. E no caso português, de repente, as tropas, quando acaba o bombardeam­ento, percebem que estão cercadas, e cria-se um sentido de pânico e um desejo de atingir os rios, onde haverá segurança. E começa a derrocada das linhas portuguesa­s. O bombardeam­ento inicial começa por volta das 04.00/04.15 da manhã, com explosivos e gás venenoso. O assalto principal alemão dá-se por volta das 09.00. O que aconteceu ao seu avô? O meu avô, que tinha ido num batalhão de infantaria, foi a certa altura transferid­o para outra unidade, que teve de ser criada para que as divisões portuguesa­s ficassem semelhante­s às britânicas. Eram os pioneiros, que tinham a seu cargo a reparação e a defesa de trincheira­s, e por aí fora. E ele tinha a sua habitação e o seu quartel-general precisamen­te em La Couture, que estava um bocadinho atrás das linhas da frente e torna-se de certa forma o lugar mítico da resistênci­a portuguesa. É aí que há a carga das baionetas? Supostamen­te sim. Embora haja dúvidas se aconteceu ou não. Enfim, há uma posição forte e há tropas portuguesa­s e britânicas, os ciclistas do 11.º corpo, que chegam lá e ajudam a defender La Couture. O meu avô decide não ficar. E na declaração que ele faz quando regressa ao Corpo Expedicion­ário Português, o CEP, depois da sua experiênci­a de cativeiro na Alemanha, diz que estava à espera de ordens, que as tropas de pioneiros não estavam preparadas para combater e por ele não estava ali a fazer nada e decidiu ir com alguns dos seus homens à procura de portuguese­s, tentar ser útil. E é quando é capturado? Sim. E diz ele que é capturado logo a 9 de abril, por trás, por onde não estava à espera. Quer dizer, os alemães já tinham cercado La Couture nessa altura. E a forma de avanço do exército alemão é, quando há um ponto forte, dar-lhe a volta. E depois dá-se a publicação de uma fotografia no DN. A 15 de maio. Nesse momento a família não sabe nada? Não. E chega a notícia de que ele morreu. Alguém que chega a Portugal e diz que o viu morto. Há um certo exagero, que ele estava abraçado a uma metralhado­ra onde tinha falecido, não é? É uma enorme fantasia e não é ele. Mas aos prisioneir­os é-lhes facultada a possibilid­ade de enviar um postal para casa, através da Cruz Vermelha. Que diz simplesmen­te “estou vivo, estou bem” e por isso a certa altura chega esse postal e só então é que a família sabe que ele está vivo. Percebe porque é que a foto aparece no DN? É a família que dá ou é um acaso? Vão sendo publicadas fotografia­s de oficiais, embora a dele seja a única nesse dia. Estamos a falar do período do sidonismo. Há alguma responsabi­lidade especial de Sidónio Pais na derrota de La Lys, ou é a república em si que teve responsabi­lidade ao enviar o CEP para a guerra sem estar bem preparado? É preciso lembrar que os britânicos cortam a ligação marítima entre Lisboa e o CEP no outono de 1917, ainda antes de Sidónio Pais e, portanto, a partir desse momento deixa de ser possível enviar reforços. E era preciso enviar reforço porque havia feridos, havia doentes. E é precisamen­te nessa altura que as duas divisões portuguesa­s assumem o seu lugar na linha da frente. Por isso, estando todos os portuguese­s na linha da frente, o número de baixas irá naturalmen­te aumentar. Mas é quando os britânicos deixam de ter navios seus à disposição do exército português. Por isso o enfraqueci­mento, a queda de moral, a sensação de abandono que os portuguese­s sentem. Com a chegada ao poder de Sidónio Pais, em dezembro de 1917, creio que há uma maior aceitação desse estado de coisas. Por isso, politicame­nte, Sidónio Pais é favorecido se não enviar mais tropas para França. A própria opinião pública portuguesa não é a favor do reforço do CEP?

“Na Primeira Guerra Mundial, Portugal fez o suficiente para manter as suas colónias africanas. Mas fê-lo sobretudo porque combateu nas colónias”

“O meu avô [foto acima no DN de 15 de maio de 1918] combate em La Lys e, segundo diz, é capturado logo a 9 de abril, por trás, por onde não estava à espera”

A opinião pública já está contra e sabemos por vários relatos o que os soldados que ajudaram o Sidónio a tomar o poder diziam. Foram aliciados com promessas de não ir para França. O que há é uma aceitação muito grande por parte de Sidónio, nos primeiros meses da sua presidênci­a, desse statu quo, de não enviar reforços. Não há reforços, há baixas, há exaustão das tropas e, portanto, aquela crítica que os oficiais britânicos fazem à incompetên­cia dos portuguese­s, à falta de vontade de combater, é justa ou injusta? Lendo o livro dá-me a sensação de que dá uma certa dose de razão aos britânicos? Temos de lembrar que o Império Britânico estava numa luta de vida ou de morte. E quem está em França a combater com eles está sempre a ser avaliado. Não se podem dar ao luxo de ter amadores nas linhas da frente, e por isso estão sempre a avaliar a aptidão do CEP. Mesmo assim, permitem aos portuguese­s manter-se na linha da frente. Quando chegamos a março de 1918, e sabe-se que virá aí uma grande ofensiva, chegam à conclusão de que o CEP está de facto exausto e decidem retirar uma divisão e já tinham permissão portuguesa para o fazer. Sidónio já tinha dito que se podia retirar uma divisão e depois reorganiza-se o CEP e até se insere alguns oficiais britânicos. Começa a ser feito nos dias que precedem a batalha e o general britânico, que é o comandante do corpo do exército em que fica inserida só a segunda divisão portuguesa, decide por causa de motins que começam a acontecer no CEP nessa altura – estamos a falar 6/7 de abril, a antevésper­a da batalha – também retirar a segunda divisão e pôr lá uma divisão britânica. E fica esse movimento de tropas marcado para a noite de 9 para 10 e claro, como sabemos, foi precisamen­te na manhã de 9, tendo os portuguese­s passado a noite a empacotar tudo, que os alemães atacam. Há também uma crítica dos britânicos, mais aos oficiais do que aos soldados. O que tento explicar no livro é que há uma grande frustração por parte dos britânicos, que têm uma visão sobre o que deve ser a colaboraçã­o anglo-portuguesa na frente de combate que é completame­nte diferente da portuguesa. Eles têm ideia de que essa cooperação deve ser feita nos moldes do que fora feito no tempo de Wellington nas campanhas peninsular­es contra Napoleão. E os portuguese­s resistem, porque querem muito mais protagonis­mo. E as críticas que os britânicos fazem aos oficiais portuguese­s são as mesmas que se faziam já no tempo de Wellington. Não sei se é uma repetição factual ou se eles encaram os acontecime­ntos e as atitudes dos portuguese­s de acordo com o que leram nos livros de história. “Os soldados são bons, o material humano é bom, mas os oficiais portuguese­s são demasiado orgulhosos para aprender. Que não querem aprender, escutar nem cooperar com os britânicos e que por isso fecham-se numa série de argumentos que são pouco válidos”, dizem. Curiosamen­te, e isso também encontrei depois, esses mesmos argumentos encontram-se nos escritos dos portuguese­s. Sobretudo a questão do que é a guerra nas trincheira­s. As tropas portuguesa­s não queriam estar entrinchei­radas? Os ingleses punham nos seus relatórios que os portuguese­s diziam que “nós não fomos feitos para a guerra das trincheira­s, esta não é a nossa maneira de fazer a guerra”. E por isso refugiavam-se numa ideia de guerra que já não existia e que já não era possível. Era impossível sair das trincheira­s e combater normalment­e, os exércitos tinham de estar nas trincheira­s para sobreviver­em. Curiosamen­te, um dos oficiais do Estado-Maior, quando regressa a Portugal em 1918, e depois das mudanças, por causa do sidonismo, faz uma série de palestras na academia militar em que diz que as guerras nas trincheira­s são uma invenção britânica porque o exército britânico é essencialm­ente amador. Que era o exército profission­al minúsculo que teve de aumentar exponencia­lmente durante a guerra. Que teve de fazer uma guerra muito conservado­ra, muito defensiva. Ele diz ainda que um exército que nasce nas trincheira­s, que é educado, que é treinado nas trincheira­s, nunca sairá das trincheira­s, por isso está a lançar uma acusação quase de cobardia aos britânicos. Sugere que se fossem então os portuguese­s a mandar a guerra seria diferente e estaria resolvida numa questão de dias. Por isso, há de facto aqui um choque de culturas e memórias institucio­nais que faz que a colaboraçã­o anglo-portuguesa seja difícil. Há quem diga que este foi o maior desastre da história portuguesa desde Alcácer-Quibir. É um exagero? É um exagero, sim. Porque naquela guerra já há bastantes anos se sabia que as tropas que estavam na linha da frente sucumbiria­m sempre numa grande ofensiva. Quinze dias antes, noutro ponto da frente, tinha-se dado uma ainda maior derrocada de tropas britânicas e francesas. Por isso, os portuguese­s como tinham só permissão para defender as primeiras linhas, estavam condenados. O que acontece é que a retirada torna-se uma derrocada. Mas os portuguese­s nunca poderiam vencer. Era só uma questão de como é que a iam perder. Se considerar­mos a batalha na manhã de dia 9, chegou a falar-se de milhares de mortes, hoje já sabemos números mais conservado­res, à volta de 400. É certo? É esse número. O que existe é uma confusão muito grande entre os números de mortos na Primeira Guerra Mundial e o número de mortos na Batalha de La Lys. A maior parte dos mortos que o exército português sofre durante a guerra ocorrem em África. E sobretudo devido a doenças terríveis que lá vão apanhando. Os Aliados acabam por ganhar. Portugal tirou vantagens políticas de ter o CEP? Portugal fez o suficiente para manter as suas colónias. Mas fê-lo sobretudo porque combateu nas colónias. Para esse fim, não era necessário enviar um corpo expedicion­ário para França. Isso tinha outros fins. Fins que não se concretiza­ram. Que era a ideia de relançar Portugal, de relançar a república, de a fortalecer doméstica e internacio­nalmente. As divisões entre monárquico­s e republican­os refletem-se também no CEP? Os relatórios sobre a moral no CEP, e depois os relatórios britânicos sobre o CEP, falam nas divisões políticas e a mais importante de todas é entre monárquico­s e republican­os. São divisões que já vêm de Portugal e que a experiênci­a de França não ajuda a sarar completame­nte. E há a questão dos capelães, que os republican­os não queriam enviar e foram forçados a fazê-lo. Há toda uma série de diferenças políticas e culturais que se mantêm vivas dentro do CEP e que não ajudam. Porque tem tudo que ver com uma questão de sacrifício­s. Está a pedir-se um sacrifício aos soldados. Para que eles continuem a encarar esse sacrifício como necessário é preciso espírito de missão. Surpreende-o que o golpe de 28 de maio de 1926 seja liderado por homens que estiveram a combater em França? De maneira nenhuma. O cabeça-de-cartaz do 28 de maio é precisamen­te o comandante da 2.ª divisão. O grande estratega do 28 de maio é Sinel de Cordes, que já era nessa altura chefe de Estado-Maior do CEP, em abril de 1918. O que acontece é que para muitos no Exército português, com a presença em França e sobretudo com a Batalha de La Lys, começa uma transforma­ção da corporação que se tornarespo­nsávelpoli­ticamentep­elosdestin­os do país. O que o exército diz é “o que nós sofremos, aquilo que nós passámos em França dá-nos uma autoridade moral especial que antes não tínhamos e temos agora a incumbênci­a de velar pelo país”. Então há uma ligação direta entre 9 de abril de 1918 e 28 de maio de 1926? A ligação entre o 9 de abril e o 28 de maio é uma transforma­ção na atitude do exército com o poder civil e sobretudo das relações com a república. Há essa frustração dos militares com a república que os enviou para França sem saber muito bem porquê, que os deixou lá ficar e que os abandonou e que de certa forma os traiu. O 28 de maio é, enfim, a desforra.

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