Diário de Notícias

E ÀS 18.40, À SEGUNDA TENTATIVA, LULA ENTREGOU-SE

Foi o último dia de liberdade. Teve o povo e o clero ao seu lado, disse ter um sonho e emocionou-se. Pelas 18.40 entregou-se à polícia

- JOÃO ALMEIDA MOREIRA São Paulo

A luta de Lula não se resumiu aos discursos. Os advogados voltaram a entrar com um habeas corpus, no Supremo Tribunal Federal, entretanto recusado. A guerra jurídica está perdida. A política e a campanha eleitoral, Lula e o PT têm esperança de que ainda não

“Eu vou”, disse Lula da Silva, às 16.42 de ontem no palanque instalado em frente ao Sindicato dos Metalúrgic­os do ABC, em São Bernardo do Campo. E às 18.40 (22.40 em Lisboa), mais de 20 horas depois do horário sugerido pelo juiz da Operação Lava-Jato Sérgio Moro, o antigo presidente do Brasil, agora com 72 anos, saiu pelo próprio pé da sede do sindicato, atravessou uma viela e entrou num carro da Polícia Federal que o esperava, entregando-se assim às autoridade­s. Duas horas antes Lula da Silva anunciara aos seus apoiantes, em clima de comoção, que estava preparado para começar a cumprir os 12 anos e um mês de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro pela posse do apartament­o triplex no Guarujá. Teve de romper um bloqueio criado pelos próprios militantes para conseguir sair no carro da polícia rumo à esquadra do Aeroporto de Congonhas e daí, de avião, para a cela em Curitiba.

Uma tarde que seria de tristeza, com a despedida de Lula e a missa em memória da sua falecida mulher como panos de fundo, tornou-se, à brasileira, uma festa, com direito a set list escolhida pelo antigo presidente: Asa Branca e O Que É, O Que É, de Gonzaguinh­a, Apesar de Você, de Chico Buarque, e o samba Deixa a Vida Me Levar, de Zeca Pagodinho, que fez até políticos e manifestan­tes rebolarem no palanque e no chão. Maria Gadú, Tulipa Ruiz e outros músicos tocaram ainda Maria, Maria, de Milton Nascimento, um pedido de Dilma Rousseff, e Porto Solidão, de Jessé, a música preferida de Marisa Letícia, mulher de Lula falecida em fevereiro de 2017 que ontem completari­a 68 anos.

“É golpe”, disse um dos padres que celebraram a missa por Dona Marisa, enquanto outros brincavam e riam, cúmplices, com Lula – por tradição, ao contrário do que se passa noutros países, a Conferênci­a Nacional dos Bispos do Brasil, autoridade da Igreja Católica, é considerad­a próxima da esquerda por causa da luta comum durante a ditadura militar.

Depois do clero, a festa passou para o povo, que exigia em cânticos que Lula não se entregasse. “Não tem arrego [não há recuo]”, gritavam uns, por entre cânticos de “Lula, guerreiro, do povo brasileiro”, cantados por outros. Aquele “eu vou” de Lula, foi por isso, recebido com consternaç­ão – mais tarde militantes bloquearam por hora e meia a tentativa de Lula sair do sindicato. Mas o político tratou logo de mobilizar os milhares de militantes do Partido dos Trabalhado­res (PT) e de outras forças políticas, ao instigá-los a “serem Lulas e mais Lulas”. “Eu não sou um ser humano, eu sou uma ideia, todos vocês agora vão virar Lula, eles acham que tudo o que acontece nesse país é responsabi­lidade do Lula, agora eu responsabi­lizo vocês.”

O antigo presidente abraçou-se, entretanto, a Fernando Haddad, o ex-prefeito de São Paulo que pode substituí-lo como nomeado pelo partido, e terminou a intervençã­o entre Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila, respetivam­ente candidatos pelo Partido Socialismo e Liberdade e Partido Comunista do Brasil, sinais entendidos como passagem de testemunho. Na sequência, Lula até se antecipou à discussão sobre privatizaç­ões, que marcará parte dos debates presidenci­ais daqui para a frente, e anunciou os colegas de partido que se candidatam ao governo de estados Brasil afora.

Antes, Lula falara menos do futuro e mais do passado. Do passado sindicalis­ta – “Vivi aqui os melhores momentos da minha vida, aprendi sociologia, economia, política, física, química no chão da fábrica.” E do passado enquanto presidente, inspirado no discurso de Martin Luther King: “Eu construí o sonho de ver um país em que os pobres pudessem ir à universida­de, andar de avião, um sonho de combate à mortalidad­e infantil, com leite, arroz e feijão para todas as crianças, em que os juízes não fossem só da elite mas vindos de Heliópolis ou Itaquera [bairros pobres de São Paulo], se ter esse sonho é crime, então eu sou um criminoso.”

Atacou os inimigos, como a imprensa – “a [revista] Veja e a [Rede] Globo vão ter orgasmos múltiplos ao verem a minha foto na prisão” –, a justiça – “debato com o Moro e com os juízes de segunda instância onde e quando quiserem, eu durmo tranquilo à noite e eles não” – e os rivais políticos – “para o golpe não bastava derrubarem a Dilma, era preciso que eu não fosse candidato nem que pudesse participar na campanha”.

A luta de Lula não se resumiu aos discursos – os seus advogados voltaram a entrar com um habeas corpus, desta vez no Supremo Tribunal Federal, entretanto recusado. A guerra jurídica está perdida. A política e a campanha eleitoral, Lula e o PT têm esperança de que ainda não.

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 ??  ?? Lula da Silva, visivelmen­te cansado, mas apoiado por milhares de pessoas junto ao Sindicato dos Metalúrgic­os, em São Bernardo do Campo, ontem
Lula da Silva, visivelmen­te cansado, mas apoiado por milhares de pessoas junto ao Sindicato dos Metalúrgic­os, em São Bernardo do Campo, ontem
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