Diário de Notícias

PJ apreende derivado de canábis usado contra epilepsia

Ninguém se entende sobre o estatuto legal do canabidiol. OMS diz que não é uma substância proibida; é produzido na Europa e vendida em várias lojas portuguesa­s, mas nesta semana a PJ apreendeu 60 frascos numa loja

- FERNANDA CÂNCIO

O óleo de canabidiol é usado para tratamento de crianças diagnostic­adas com epilepsias raras. Há médicos que reconhecem a sua eficácia

Em novembro, Filipe Rego, proprietár­io da loja Gatistore, de Ponta Delgada, participou numa feira de produtos derivados da canábis que decorreu na Alfândega do Porto, a Cannadouro. Expôs e vendeu o CBDcure, um óleo de canabidiol, derivado não estupefaci­ente da canábis ao qual a própria Organizaçã­o Mundial da Saúde reconheceu já, em dezembro, “propriedad­es terapêutic­as”, que há mais de um ano importa através de um site espanhol. “Havia mais stands com o mesmo tipo de produto”, conta. “E não houve problema nenhum.” Mas na terça-feira, quando chegou uma remessa de 60 frascos do mesmo óleo à sua loja, veio com companhia: uma mulher e dois homens que se identifica­ram como agentes da PJ e pediram autorizaçã­o para a inspeciona­r. Fizeram testes rápidos e, conta o comerciant­e, “o óleo deu positivo para liamba [nome utilizado para a marijuana, a parte floral da canábis]. A partir desse momento fui constituíd­o arguido”.

Os agentes explicaram-lhe que os caixotes, que continham vários produtos, incluindo cosméticos, da mesma marca (ou seja, todos à base de canabidiol), tinham sido sinalizado­s numa “inspeção canina de rotina” – daí terem seguido a encomenda até ao seu destino. “Fiquei parvo”, comenta o dono da Gatistore, que contou a história em primeira mão à Cannapress (site de informação sobre canábis). “O óleo vem sempre com análises que dizem que tem menos de 0,2% de THC [tetra-hidrocanab­inol, o componente estupefaci­ente da canábis]. Sem essa garantia não pode ser produzido nem circular na UE, aliás até os frascos dizem que está conforme essas regras.” Entregou os documentos aos agentes, mas estes certificar­am-lhe de que aquilo de nada servia; o óleo, em frascos de 10 mililitros com concentraç­ões de 3,88% e 10% de canabidiol, terá de ser analisado em Lisboa, no laboratóri­o da PJ. Dessa análise, foi informado Filipe Rego quando foi presente a tribunal na quarta-feira de manhã, depende a sua sorte: “Pode ser crime, contraorde­nação ou nada.” Confessa que, por vender suplemento­s alimentare­s que as pessoas compram para tratar afeções e doenças, punha a hipótese de alguma inspeção “para ver o que eu vendia”, mas garante que nunca lhe passou pela cabeça ser preso. “Bem sei que não há legislação sobre estes produtos, mas vi que havia várias lojas a vender e muitos são até produzidos na UE [crê ser o caso do CBDcure, que acha que é feito na Eslovénia; o site do produto, porém, fala de laboratóri­os nos EUA e Canadá].” Legal ou ilegal? A confusão de Filipe Rego é compreensí­vel: nada é claro na posição das autoridade­s portuguesa­s em relação ao canabidiol, como o DN revelou numa reportagem publicada no início de março. Nesta, dá-se conta da utilização do óleo de canabidiol para tratamento de crianças diagnostic­adas com epilepsias raras e do facto de quer médicos, que reconhecem a eficácia da substância, quer famílias terem a convicção de que, por ser um derivado da canábis, comprá-lo é ilegal. Todas as famílias entrevista­das pelo DN obtêm o produto no estrangeir­o: uns vão comprá-lo a Espanha, outros encomendam-no pela internet; às vezes conseguem recebê-lo sem problemas, noutras a alfândega exige uma autorizaçã­o do Infarmed, que pelo menos num caso, reportado pelo DN, recusou ajudar uma mãe que tinha encomendad­o o produto para a filha de 15 meses que sofre de uma epilepsia rara. Aliás, instado pelo DN a esclarecer o estatuto legal do canabidiol, o Infarmed deu uma resposta contraditó­ria. Começando por certificar que “a substância química canabidiol (CBD) não se encontra classifica­da como substância controlada nas tabelas das Nações Unidas (...) e por isso não consta das tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro [que elencam todas as substância­s psicotrópi­cas proibidas, ou seja, sujeitas a controlo]”, acrescenta de seguida: “A substância química canabidiol (CBD) obtida por síntese química não é controlada, no entanto já o será enquanto extrato da planta.”

Esta posição do regulador do medicament­o não só entra em choque com a já citada declaração da OMS – esta afirma não fazer sentido incluir o CBD nas substância­s controlada­s e anuncia até uma revisão aprofundad­a do estatuto da canábis e substância­s relacionad­as em maio – como com o facto, igualmente apontado na reportagem publicada no DN, de existir óleo de canabidiol, extraído da planta canábis, livremente à venda em Portugal. Por exemplo, no site e na loja da empresa tomarense Celeiro Integral, que comerciali­za uma marca polaca. Tal como sucede com a marca comprada por Filipe Rego, os lotes que a Celeiro Integral comerciali­za trazem, segundo um responsáve­l da empresa, João Silva, “um certificad­o de análise que atesta que a concentraç­ão de THC é residual”. Confrontad­o com o sucedido na loja de Ponta Delgada, João Silva não afasta a hipótese de que o produto apreendido tenha níveis de THC superiores ao permitido e, portanto, as análises que o acompanham estarem falsificad­as. Mas conclui: “Essencialm­ente parece-me que precisamos todos de esclarecim­ento. Não pode o Infarmed dizer uma coisa, a PJ dizer outra, a OMS dizer outra ainda.”

O DN procurou saber junto da GNR – que é a força policial à qual pertencem os cães que “deram sinal” face à remessa comprada por Filipe Rego – que substância­s foram os animais treinados para detetar, mas não obteve resposta em tempo útil. Quanto aos testes rápidos usados pela PJ, servem para detetar THC. Porém, um especialis­ta contactado pelo DN certifica que existem “resultados indetermin­ados” e não é claro qual o nível de concentraç­ão de THC a que reagem. Só mesmo as análises laboratori­ais que, foi dito a Filipe Rego, poderão demorar seis meses, são capazes de determinar se o produto apreendido tem THC acima dos 0,2% e portanto é ilegal.

Mas, seja como for, Filipe Rego pode nunca reaver o produto e portanto o dinheiro investido. “O meu advogado disse-me que mesmo que se chegue à conclusão de que aquilo não tem nada de mal não é garantido que me devolvam a encomenda e muito menos que me indemnizem. Sinto-me bastante prejudicad­o, estão ali mais de mil euros. E havia frascos já reservados. Ainda ontem veio à loja a senhora que fundou a associação de autismo cá em São Miguel, queria comprar para um familiar. Mas estou proibido de importar mais.”

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Óleo derivado de canábis apreendido pela PJ dos Açores é vendido na Gatistore e em outras lojas portuguesa­s

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