Grandes romances deviam ter parte II? Sete escritores respondem
Ninguém sabe como os grandes sucessos literários acontecem. Quando Margaret Mitchell publicou E Tudo o Vento Levou nunca esperou que ficasse tão eternizada e recusou sempre escrever uma continuação, mas posteriormente Alexandra Ripley foi convidada a dar uma segunda vida a Scarlett e Reth Butler e ainda houve uma segunda continuação por Donald McCaig. Harper Lee foi mais radical e só publicou Matem a Cotovia em toda a sua vida, mesmo que tenha escrito um “rascunho” anterior que, quando já estava demente, foi editado, Vai e Põe Uma Sentinela, sem a sua autorização.
Em Portugal, os autores são pouco dados a fazer continuações, mesmo que a José Saramago fosse muitas vezes pedido que desse uma segunda vida a Blimunda. Não o fez, apenas prolongou o Ensaio sobre a Cegueira no Ensaio sobre a Lucidez, por exemplo, fazendo reaparecer a mulher do médico. No entanto, há quem gostasse de ver Eça de Queirós recriado. É o caso do autor/editor Francisco José Viegas, que defende seriamente a continuação das obras de um dos maiores escritores portugueses. Uma opinião que não tem muitos seguidores entre autores, como se pode depreender das continuações que sete escritores portugueses sugerem ser possíveis ou, no caso de Mário de Carvalho, não passar de uma insensatez.
António Mega Ferreira
Há muitos livros que pedem uma continuação, a começar pela Odisseia: o que é que aconteceu a Ulisses depois de dar cabo dos pretendentes de Penélope e recuperar o poder em Ítaca? Mas um dos mais estimulantes finais “suspensos” do romance ocidental é o de A Ilha do Tesouro, de Stevenson: o que terá acontecido ao encantador Jim Hawkins depois de receber o seu quinhão do tesouro encontrado naquela ilha? Casou-se, teve filhos, aburguesou-se à sombra dos lingotes acumulados pelo pirata Flint? Ou deu ar ao dinheiro, extraviou-se, gastou tudo em vinho e tavolagem? Ou, ainda, tornou-se um astucioso cavalheiro de indústria, quiçá aplicando o seu capital no comércio do vinho do Porto que veio encontrar por uma tuta e meia nas adegas do Porto e de Gaia? E o Long John Silver, que fugiu com um saco de moedas num abrir e fechar de olhos, na última e vertiginosa página do romance? Foi ter com a sua negra, como intui o genial Hawkins, e passou os últimos dias da sua vida em sossego? Ou, prisioneiro de uma vertigem de aventura e riqueza, lançou-se de novo aos mares, agarrado à muleta, em busca de tesouros dos quais ficará para sempre excluído? Talvez o irascível papagaio Capitão Flint lhe tenha sobrevivido, com o seu grito demencial repetido: “Moedas de oito! Moedas de oito!”
Filipa Leal
Alexis, ou Tratado do Vão Combate, de Marguerite Yourcenar, poderia ter merecido a resposta de Monique, a mulher deixada pelo músico que ali indicia a sua homossexualidade. Esta primeira novela deYourcenar, que David Mourão-Ferreira descreveu como “o pequeno grande milagre da sua narrativa de estreia”, é uma longa carta. E uma carta abre, porventura, uma hipótese de continuidade, um “direito” de resposta. A própria Yourcenar, em 1963, escrevia: “Imaginei por vezes compor uma resposta de Monique.” Não o fez. Mourão-Ferreira falava da “prodigiosa economia de processos, pela recusa de todo o descritivismo e pelo esforço de remeter a narração aos extremos da allusiveness”. Talvez a contenção angustiada deste combate se tornasse vã, chegada a resposta. Recordo uma das mais belas cartas de amor em língua portuguesa: a que se encontra entre os papéis deWinnie, na novela Amor, de António Mega Ferreira. Escreve Mega Ferreira: “Podemos imaginar uma saída elegante: para que possas conservá-la como pura carta de amor, quero eu dizer, sem o embaraço de saberes que ela te foi escrita por alguém que não amas, não a assino. Dou-te tudo, até a hipótese de esta carta não ter sido escrita por mim.” Não há resposta possível quando desconhecemos o remetente, como neste caso. Mas gosto de pensar que assim poderia ter terminado a carta de Monique para Alexis.
João Pinto Coelho
Todos os grandes romances são inacabados, nem que seja aos olhos dos que os leem. Tal deve ter pensado Lev Tolstói ao acrescentar uma oitava parte à derradeira tragédia de Anna Karenina. E ao continuar a escrever depois de ter perdido a heroína, o autor torna-se o primeiro a continuar um romance que só não termina debaixo do rodado de um comboio porque Tolstói despreza a personagem que escolheu para titular a obra – esta existe apenas para dar corpo a um amor perverso. E é esse amor, encapsulado e autofágico, que Tolstói esmigalha com deleite na estação de Obiralovka. Talvez por isso, ao longo das últimas páginas, não contando com o libelo cáustico da Condessa Vronskaya mais a amargura do filho, não há um só sinal de Anna – nenhuma palavra ficará por dizer, sentencia assim o autor. Mas se Tolstói fecha a porta de saída, há que chegar à entrada e continuar--lhe o romance dali para trás. A história só pode prolongar-se por aí, antes do primeiro capítulo; um prefácio, um ajuste, um ensejo para animar Anna Arkadievna com um sopro de vida, darlhe a carne e o sangue que o autor lhe negou para provar um amor degenerado. Para tanto, talvez começar por assentar o pecado original nos ombros de Aleixo, o chavelhudo; de o amasiar com cada concubina de São Petersburgo, fazendo correr os rumores e fustigar a esposa com o escárnio da cidade. Então, sim, devastá-la lenta-
mente, sugar-lhe o espírito e os ossos. No fim, já desalmada, entregá-la ao resto do romance como Tolstói sempre a quis.
Julieta Monginho
Um grande romance não fez mal a ninguém, não merece ser condenado à continuação (a menos que o próprio autor decida continuá-lo). Cada romance é um universo, não há forma de o prolongar. O universo expande-se sem precisar de intervenção exterior, pela profusão de sentidos propostos à leitura. Existem, sim, narrativas tão poderosas que integram o espaço cultural e pessoal do escritor. Desse modo podem provocar ou povoar novos universos ficcionais. A Odisseia de Homero, por exemplo: Joyce, em Ulisses; por sua vez Enrique Vila-Matas em Dublinesca; Gonçalo M. Tavares em Uma Viagem à Índia (citando apenas os que sinto próximos). A mim também aconteceu, com O Processo, de Kafka. Talvez tenha cometido um delito contra a literatura, executem-me como a Joseph K., e, ao contrário dele, com culpa assumida: no meu anterior romance – Os Filhos de K – passei para o lado de dentro do tribunal, a que os acusados não têm acesso, e percorri-lhe os labirintos. Novos fragmentos, de uma paisagem estranha, como a do bairro das casas da justiça e o sótão do pintor que faz o retrato dos juízes. E quantas vezes desejei prolongar As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, acrescentando-lhe outras. Tantas vezes quantas as que me ri da minha fantasia e voltei a folhear o livro, como se a voz de Marco Polo fosse a minha. O catálogo das formas é infinito: enquanto houver uma forma que não tenha encontrado a sua cidade, continuarão a nascer novas cidades. Nesse livro, e na minha memória de escritora, há uma chamada Clarice. Cidades, universos, romances. Infinitos. Incontinuáveis.
Lídia Jorge
Que livro mereceria ter uma continuação? A pergunta é simples, a resposta é difícil, porque os grandes livros, todos eles, merecem uma continuação, a continuação que os leitores criam por si mesmos, depois da última página. Um grande livro é aquele que se continua no leitor. Isto significa que se estabelece uma zona indefinida em que não se sabe se um livro pede uma continuação, porque a sua força invasiva é de mais, se ele, por natureza, dispensa qualquer prolongamento porque a sua força cumpre-se na missão da sua incompletude. Assim sendo, refiro um livro cuja leitura muito me impressiona e me deixa sob suspense sempre que a ele regresso, com a ideia de que gostaria de saber alguma coisa mais sobre a personagem que tem por nome Eguchi, o protagonista de A Casa das Belas Adormecidas, deYasunary Kawabata. Trata-se de um livro relativamente breve – na edição portuguesa da Assírio & Alvim, com tradução de Luís Pignatelli não atinge as cem páginas – lê-se ao longo de uma tarde e uma noite, e deixa-nos sem dormir por uma temporada inteira. Isto é, Eguchi, um homem no declínio da sua vida, procura consolo numa casa que aluga raparigas virgens adormecidas para homens que perderam a sua virilidade. Não é, porém, o caso de Eguchi, que assim pode fazer uma experiência circular, vivenciando a sua própria situação, a dos outros clientes da extraordinária casa, e rememorando a sua relação com as mulheres ao longo da vida. Trata-se, pois, de um olho lúcido que abarca o universo do erotismo e da morte, seguindo um trajeto impressionante em clima de terror branco. No final, a sua experiência de vida é antecipada no espelho da morte de um cliente mais velho e de uma das raparigas com quem partilha o leito. Percebe-se que se está numa zona limite. Mas eu entendo que o livro merecia uma continuação feita por um outro escritor. Certa vez li uma crónica de Gabriel García Márquez a propósito de uma viagem de avião que tinha feito ao lado de uma rapariga adormecida, e ele evocava com devoção o livro de Kawabata. Sempre tive a ideia de que o seu romance Memória de Minhas Putas Tristes foi uma tentativa de réplica a A Casa das Belas Adormecidas. Se foi, ficou aquém. O livro de Kawabata tem tal poder evocador que merecia uma continuação, de modo a ir mais longe na vida daquela personagem Eguchi que tem ainda muito da sua vida para contar quando se fecha a última página. Julgo que tenha sido tentado. Que eu dê conta, julgo que ainda não tenha sido conseguido.
Mário de Carvalho
Livros que mereçam uma continuação? Por outro escritor? Nenhum. Se uma obra é considerada de mérito, o mérito para lhe tocar cabe apenas ao seu autor e a mais ninguém. Ainda que o final seja em aberto, ainda que se apresente incompleta. Nos meus tempos de jovem, andavam por aí uns poetastros rimadores que se propunham continuar Os Lusíadas, ou a Mensagem. Era gente de boémias e de estúrdias e não sei se algum deles escreveu um único verso a completar Camões ou Fernando Pessoa. Ainda em vida de Cervantes um tal Avellaneda publicou uma continuação do D. Quixote. Não foi longe. Todos nós gostaríamos que Stendhal, Flaubert, Musil, Kafka tivessem acabado as obras que não completaram. Seria um assombro se se descobrisse uma continuação dessa obra-prima que é Almas Mortas de Gogol. Mas teria de ser da autoria do próprio. Cada obra deve permanecer com o seu autor. Eu sou dos que desconfiam dos projetos “a partir de…”. Parece-me que há sempre o seu quê de abuso ou profanação quando se mexe na obra de um outro. Imaginem que alguém lhe dava para continuar Os Maias ou A Casa Grande de Romarigães. Seria insolência, não?
Richard Zimler
Willa Cather, um dos meus romancistas preferidos, cresceu no Nebraska numa altura em que esse estado marcava o limite ocidental dos EUA. As suas histórias e personagens refletem o carácter rural (quase selvagem) da paisagem, o isolamento das pequenas cidades, e a colonização – pelos imigrantes europeus – da planície americana, um vasto território que poucos anos antes pertencia aos índios. Escreve num estilo límpido e poético, sem recorrer ao calão e sem ceder às modas literárias da época. Em consequência, os livros dela envelheceram muitíssimo bem, ao contrário dos romances de autores mais conhecidos e premiados como Hemingway, cujo estilo de escrita frequentemente parece antiquado e desajeitado. A obra-prima de Cather é, na minha opinião, My Antonia, a história de uma jovem imigrante da Boémia – Antonia – e o seu ainda mais jovem amigo Jim. A história das dificuldades que Antonia e a sua família encontram no seu novo país é contada por Jim com tanto amor, compreensão e sensibilidade, que o leitor não quer que o livro acabe. Aliás, fiquei deprimido no fim, pois tinha de sair do mundo habitado pelas comoventes e maravilhosas personagens de Cather.