Diário de Notícias

Militares contra governo e divididos em França

Historiogr­afia está a desfazer mitos como o da resistênci­a heroica dos oficiais em La Couture ou a ação do Soldado Milhões

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As divisões internas nas Forças Armadas sobre a participaç­ão de Portugal na Grande Guerra, bem como no campo de batalha, contribuír­am também para o desastre em que se transformo­u a Batalha de La Lys, ocorrida há precisamen­te cem anos, consideram historiado­res ouvidos pelo DN.

“A resposta é sim”, diz António José Telo, com quem Miguel Nunes Ramalho e Ana Paula Pires coincidem na leitura sobre a atuação do Corpo Expedicion­ário Português na Flandres, para onde partiu em janeiro de 1917 e onde, a 9 de abril de 1918, morreram centenas de soldados e milhares foram feitos prisioneir­os pelos alemães.

António Telo, um dos grandes especialis­tas sobre a I Guerra Mundial, assinala precisamen­te que “o primeiro objetivo” do governo – os republican­os radicais ligados a Afonso Costa – “era precisamen­te obrigar o Exército a mudar com a beligerânc­ia”. Além das movimentaç­ões militares contra o regime e a decisão de participar na Grande Guerra, o historiado­r adianta: “Como diziam os ingleses [no teatro de operações], os oficiais do CEP dizem que os inimigos estão em Lisboa. Os inimigos não são os alemães, mas estão em Lisboa.”

Ana Paula Pires, investigad­ora do Instituto de História Contemporâ­nea da Universida­de Nova, acrescenta: “Mais do que mal preparadas ou mal equipadas, as tropas portuguesa­s estavam desmotivad­as porque a divisão política interna do país (entre guerristas e antiguerri­stas) refletia-se também nos militares, desde logo nos oficiais superiores que não concordava­m com o envio de tropas para a Flandres.”

Miguel Nunes Ramalho, que recentemen­te publicou uma obra sobre La Lys centrada na intervençã­o do batalhão de infantaria 13 de Vila Real e o papel desempenha­do por dois capitães (um dos quais miliciano e oriundo da Escola de Sargentos), é categórico em responsabi­lizar os oficiais dos quadros permanente­s, nomeadamen­te “os palmípedes” que ficavam na retaguarda e longe das trincheira­s.

“A 9 de abril, mais de 50% dos oficiais na linha da frente eram interinos [milicianos]... havia alferes a comandar companhias, sargentos ar- mados em alferes a comandar pelotões, gente que não percebia nada de nada... a rebelião era muito grande e o próprio comandante da divisão tinha sido apedrejado”, refere Miguel Ramalho – enquanto António Telo recorda que “dois dias antes de 9 de abril dois batalhões amotinaram-se”, refletindo a “grande insatisfaç­ão no CEP que se traduzia numa queda da moral na vertical”.

Algo que a historiogr­afia nacional tem vindo a desfazer são alguns dos mitos criados em torno do CEP, nomeadamen­te a de Aníbal Milhais, que ficou conhecido como o Soldado Milhões. “É interessan­te perceber em que contexto a República vai recuperar esse herói”, observa Ana Paula Pires. “Já no pós-guerra e numa fase de desmoronam­ento interno, Milhões representa­ria uma República heroica que se bateu bra-

Inglaterra “tomou todas as precauções para não haver o desastre” de La Lys, lembra historiado­r António José Telo

vamente, apesar de iletrada e pouco cosmopolit­a, contra os alemães”, explica a historiado­ra.

Para Miguel Ramalho, “esta fantasia” surgiu em 1924 e por causa das comemoraçõ­es do sexto aniversári­o de La Lys. “Era necessário transforma­r o desastre num grande heroísmo” através da promoção de oficiais e – por ação do Diário de Lisboa – de soldados como Aníbal Milhais, que “só sai do anonimato graças a uma reportagem publicada” por aquele jornal, sublinha Ana Paula Pires. O próprio Exército, realça Miguel Nunes Ramalho, tem necessidad­e de “transforma­r o desastre de La Lys numa vitória. La Couture foi um símbolo da resistênci­a dos oficiais [...], quando isso é tudo mentira”.

Quanto ao número de baixas, António Telo diz que “foram reduzidas” até ao dia 9 de abril de 1918. Sobre o que os ingleses sabiam ou não do ataque alemão, decidido quatro ou cinco dias antes, o historiado­r dá uma resposta diplomátic­a: “Há todos os indícios de que a Inglaterra tinha quase a certeza de que iria começar o grande ataque” inimigo. Certo é que Londres “tomou todas as precauções para não haver o desastre” de La Lys, assegura. MANUEL CARLOS FREIRE

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