Jogo sem fronteiras
DJOÃO GOBERN esta vez, Juan José Millás parece disponível para aderir a uma linearidade galopante, encadeando capítulos curtos (sempre menos de três páginas) num ritmo que, partindo do contágio, chega a tornar-se sufocante. Tudo – e não parece muito, esgotando-se perto da centena de páginas – para contar o percurso de uma criança que se torna jovem e depois adolescente e ainda homem, sem deixar de carregar uma imensa culpa e uma enorme frustração. A primeira nasce do ato, involuntário, que provoca um mortal acidente de viação, num momento em que o seu horizonte carregava a hipótese de suicídio. A segunda, base do que vai acontecendo, é afinal o desgosto por aquilo que interpreta como distanciamento e desprezo paternos, algo que pesa em quase todos os comportamentos do protagonista. Não se presuma, no entanto, que há aqui mais um contributo do estudo do “conflito de gerações”. O autor prefere um jogo muito mais subtil, sem fronteiras nem limites, para explanar o abismo entre pai e filho. No limite, o que os afasta é isto: o mais velho só lê, chegando inclusivamente a ser desafiado para participar em programas de televisão em que debate os livros e diz de sua justiça sobre a qualidade do que vai sendo publicado. Pelo contrário, o mais novo não lê – em especial obras que presume que lhe são “dedicadas” ou “dirigidas”, como O Idiota e Crime e Castigo, de Dostoievski, ou “romances policiais” (aqui, por se sentir um criminoso, sempre a fugir à sentença), como Águas Profundas ou Doce Doença, de Patricia Highsmith.
Vamos ao concreto: “A vida era pura casualidade. Encontras um berlinde no recreio da escola de manhã e à tarde és um assassino. De modo que, se querem saber, eu sou o que não leu Dostoievski. Haverá outros, claro, muitos, que não o leram mas eu sou o único que no ato de não o ler, incrivelmente o li, Para explicar-me, seria um caso semelhante ao daquela pessoa que nunca tendo viajado até Paris, e por conseguinte nunca ter pisado as ruas dessa cidade mítica, tem dela experiências de uma intensidade que são negadas àqueles que a conhecem.” O protagonista escreve como quem continua a urinar na cama, à noite – para chamar a atenção. E, sem qualquer acaso aqui envolvido, chama, a si e à sua disfuncionalidade pecadora, a responsabilidade pecadora, a responsabilidade pela separação dos pais. Das discussões dos progenitores, acaba por reter aquela que debate a propriedade futura da biblioteca caseira, que o pai reclama mas de que a mãe nunca abdica, chegando a propor a solução horrível: que cada livro seja dividido em duas partes, seguindo cada uma delas um destino diferente… Depois, quando escreve um conto premiado, este anti-herói aflige-se quando o pai começa por recusar a leitura do seu original (uma narrativa em que um filho procura desesperadamente a aprovação e o reconhecimento paternos…) depois de o ver caracterizado de uma forma que instintivamente o repele – está “muito bem escrito” e “lê-se muito bem”.
Num terreno (quase) exíguo, Millás percorre os grandes temas: o desgaste das relações, o peso familiar, a descoberta da sexualidade, a expiação da culpa, a solidão “acompanhada”, o respeito e o medo pela diferença, a força do perdão, a muralha que se ergue quando os “códigos” adotados não encontram pontos em comum. O espantoso é mesmo conseguir bater a todas estas portas sem atropelos nem ligeirezas – não há aqui Rossio na Rua da Betesga. Há, isso sim, em A Minha Verdadeira História, um pequeno grande livro que, além dos méritos intrínsecos, deixa impressa a vontade de conhecer melhor os escritos de um dos mestres de Espanha. Que, afinal, e já se sabia, é mesmo capaz de provocar bons ventos.