Tem mesmo de haver Síria?
ILEONÍDIO
PAULO FERREIRA mpério Otomano, protetorado francês, ditaduras várias desde a independência, estas últimas lideradas, quase regra, por figuras das minorias: esta é a história da Síria nos últimos séculos. Ajustes de contas entre comunidades existiram sempre, mesmo quando o país era governado com mão de ferro pelos sultões turcos, mas nada comparável à matança que dura desde 2011, um protesto de rua contra o governo de Bashar al-Assad que se transformou em guerra civil por culpa tanto do regime como dos rebeldes, que desde cedo aceitaram patrocinadores. Mesmo hoje, em que a vitória de Assad parece próxima, potências como Estados Unidos e Rússia insistem em ter uma palavra a dizer no futuro da Síria e dos seus povos, e vizinhos como Turquia, Irão e Israel também. Embora menos mosaico do que o Líbano, que lhe foi amputado por iniciativa dos franceses já no século XX, a Síria é dos países do Médio Oriente com maior diversidade. Se é verdade que dois terços dos 22 milhões de habitantes (números de 2011, antes dos 400 mil mortos e dos seis milhões de refugiados) são árabes sunitas, a estes somam-se comunidades alauitas (a de Assad), xiitas, drusas, cristãs várias, curdas ou turcomenas. O padrão histórico de convivência, apesar de épocas míticas de tolerância como o califado omíada, tem sido o conflito intermitente, umas vezes por razões religiosas, outras por posse de terras. Basta pensar no choque entre drusos e cristãos no século XIX que se iniciou no Monte Líbano e se estendeu a Damasco. Só impérios ou ditadores laicos conseguiram minimizar os ciclos de vingança e proteger as minorias. Os partidários de Assad insistem na ideia de uma Síria nas fronteiras pré-guerra, laica. Os rebeldes, tirando os ligados à Al-Qaeda ou ao Estado Islâmico, defendem também uma só Síria, mas livre de Assad. Apenas os curdos, e por isso os receios da Turquia de uma contaminação regional, se mostram tentados a procurar um Estado. E, no entanto, será mesmo possível reconstruir um país depois de tantas violências de uns contra outros, seja com bombas, ataques químicos ou decapitações? Tem mesmo de ser tabu a hipótese de redesenho do mapa do Médio Oriente herdado do final da Primeira Guerra Mundial e imaginado por britânicos e franceses?