Pensar a vida e o tempo segundo Samuel Beckett
Um monte de terra e uma tela de um teatro em ruínas são os únicos adereços de uma das peças mais emblemáticas do autor irlandês
E lá está Winnie. A única e inconfundível Winnie. A que resiste e ridiculariza. E se ridiculariza, talvez. O monte de areia onde está enterrada serve de habitáculo ao seu desespero em forma de alegria, tal como a imaginou um dos maiores nomes da dramaturgia moderna. Happy Days, do irlandês Samuel Beckett, passam aqui, na Sala Mário Viegas do Teatro São Luiz, a Lindos Dias!, com encenação da atriz Sandra Faleiro.
Pouco antes do ensaio de imprensa, na quinta-feira, fazem-se os últimos testes de luz e som, enquanto Cucha Carvalheiro – que, ao lado de Luís Madureira, interpretam o famoso casal eternizado por Beckett nos anos 60 – recebe ajuda para subir e se fundir na terra que a enterrará até ao pescoço. No primeiro ato, a terra dá-lhe pela cintura, a campainha soa e mais um dia começa. “Mais um santo dia”, declara a protagonista, entorpecida no amanhecer amorfo. Escova os dentes, olha para o espelho, põe batom, ajeita o chapéu, no enfado da rotina mecânica que lhe pauta os instantes quotidianos, outrora mais felizes, mas sempre valiosos e efémeros, fiéis ao alerta do escritor. “Quem me dera ter o dom de dormir”, diz, enquanto tenta acordar o marido e apelar à conversa, num monólogo vibrante e simultaneamente entediante que tem por companhia. O marido Willie (Luís Madureira) perpetua o movimento sonolento num resguardo de sobrevivência indolente que já não parece perturbar a mulher. “Coitado do Willie, sem gosto pela vida, sem interesse, sempre a dormir, quem me dera”, ressalva a sobrevivente Winnie. Uma história de sobrevivência Esta é a história deWinnie, a patética e heroica mulher que escolhe um “otimismo obstinado”, segundo considera Cucha Carvalheiro ao DN. “Como é que ocupamos o nosso tempo antes de morrermos, isto é sobre a vida, há uma crítica a um casal pequeno-burguês, em situação extrema, exatamente para o Beckett criticar essa pouca valia que as pessoas dão à vida e ao tempo”, salienta a protagonista, que vê o monte de areia como uma ampulheta. “A morte é inevitável, e enquanto cá estamos temos de aproveitar cada minuto da melhor maneira”, diz.
“A Winnie é uma heroína, é uma mulher que está enterrada até à cintura e que está a resistir”, concorda a encenadora Sandra Faleiro, que conheceu Samuel Beckett através de Mário Viegas. “Ele convidou-me para encenar Come and Go, foi o meu autor de estreia aqui nesta sala, passados 23 anos cá estou eu outra vez, é uma feliz coincidência”, revela.
Revisitar o clássico é algo que exige uma concentração férrea. “Este texto é dificílimo, muito complexo, tem muitas camadas, está cheio de pequenos detalhes que nos escapam se não estamos atentos e começámos a fechá-lo e o que queremos é abri-lo”, explica.
O que a move é sempre a paixão que sente pelo texto. “Não me interessa se já foi feito mil vezes, para mim a natureza do texto é o mais importante”, ressalva, enquanto sublinha a genialidade do autor, que traz a lume o tema da morte sempre presente. É um texto de sobrevivência e a Winnie é uma heroína”, defende a encenadora, falando inevitavelmente da atual crise na cultura. “Este cenário de um teatro em ruínas não é por acaso, tem também que ver com a oralidade, que se está a perder muito, o teatro está a ser muito mal tratado, tal como a Winnie, que também está a ser engolida”, remata. LINDOS DIAS! Encenação de Sandra Faleiro Sala Mário Viegas, Teatro São Luiz, Lisboa; Quarta a sábado, às 21.00, domingo, às 17.30; Bilhetes: 12 € De 12 a 22 deste mês