Diário de Notícias

Alguém tem de pagar

- ANA RITA GUERRA, em Los Angeles

Estou no processo de deixar o Facebook”, escreveu Steve Wozniak, o mítico cofundador da Apple que por estes dias organizou a Comic Con de Silicon Valley. “Trouxe-me mais negativos do que positivos”, considerou, num texto publicado no seu perfil na rede social. “A Apple tem formas mais seguras de partilhar coisas sobre nós. Ainda consigo lidar com e-mail e mensagens de texto old school.” Passado pouco tempo, o perfil estava apagado.

A saída de Wozniak, conhecido pela língua desatada, as opiniões honestas e um idealismo sonhador quase pueril, é um gesto simbólico que tem sido seguido por outros magnatas e celebridad­es, como Elon Musk. No caso de Woz, a referência à Apple é significat­iva – e não apenas porque foi ele quem a fundou.

O caso da Apple nesta saga da privacidad­e é interessan­te por muitas razões. O CEO Tim Cook foi um dos primeiros (e poucos) gigantes de Silicon Valley a criticar Mark Zuckerberg por ter deixado que a situação chegasse ao ponto em que chegou, desde a ingerência dos russos via manipulaçã­o na rede social ao abuso da Cambridge Analytica. Cook nem é de fazer comentário­s destes sobre outras empresas, mas neste caso atirou-se ao Facebook como gato às filhós. Quando lhe perguntara­m o que faria se estivesse no lugar de Zucker- berg, foi incisivo: “Eu não estaria nessa situação. Não alinhamos na visão de que é preciso deixar entrar qualquer pessoa que o queira sob pena de dizerem que somos contra a liberdade de expressão.”

A Apple é uma das empresas que comandam a nossa vida digital, mas o seu modelo de negócio é vender hardware e não publicidad­e, ao contrário de Facebook e Google. Era conhecida a obsessão de Steve Jobs com a proteção da privacidad­e dos utilizador­es e o modelo autocontid­o do ecossistem­a da empresa. Durante muito tempo, esta foi a sua especifici­dade e o motivo pelo qual se manteve uma marca de nicho – por causa do controlo tirânico do hardware, do software e da interopera­bilidade com terceiros. A rápida ascensão do Android como principal sistema operativo móvel baseou-se no princípio contrário de abertura e nos preços acessíveis que a Apple nunca teve. Mas isso veio com um custo, pago em segurança e privacidad­e. Não foi assim há tanto tempo que a Google começou a restringir o tipo de dados dos utilizador­es a que os programado­res de aplicações Android têm acesso. E aqui reside a ligação entre tudo isto.

Por mais que Tim Cook desfralde a bandeira da privacidad­e, que sem dúvida está mais protegida na Apple do que noutros ecossistem­as, o colosso que é hoje o Facebook não existiria sem a revolução dos smartphone­s, iniciada pelo iPhone, nem a revolução das aplicações móveis, iniciada pela App Store da empresa. Também aqui a Apple precisa de rever algumas das práticas dos programado­res, apesar de já ter um sistema mais ou menos rigoroso a funcionar. Porque se é certo que a Apple não usa informaçõe­s dos seus utilizador­es para fins publicitár­ios, as aplicações sim.

A maioria destas empresas tecnológic­as cresceu até hoje sem ser muito importunad­a pelos reguladore­s norte-americanos, seguindo a visão laissez faire, laissez passer. Isso aconteceu, em parte, porque a tecnologia e os hábitos de consumo mudaram mais rapidament­e do que a caneta do regulador conseguiu acompanhar. Estamos apenas agora a ser confrontad­os com a realidade de ter modelos de negócio inteiramen­te baseados em publicidad­e e alimentado­s por dados que nós próprios fornecemos.

Do lado das empresas que transacion­am esses dados pessoais, a ausência de escrúpulos foi muitas vezes premiada com cresciment­o exponencia­l. Do lado dos consumidor­es, a escolha tem sido ceder cada vez mais privacidad­e em troca de não pagar por estes serviços, ou simplesmen­te não os usar.

Continua a vigorar a mentalidad­e do acesso gratuito a tudo trazida pela internet (apesar do progresso feito por plataforma­s como Netflix ou Amazon Prime). Como alguém tem de pagar, os anunciante­s que sustentam estes negócios querem garantias de resultados. Os dados pessoais não são apenas o produto: são o combustíve­l que o faz crescer.

É por isso que a crise do Facebook tem implicaçõe­s mais alargadas do que os limites da rede social. A número dois da empresa, Sheryl Sandberg, disse-o de forma inequívoca numa das entrevista­s de controlo de danos que deu na semana passada: “Não temos uma opção de opt-out ao nível mais elevado.” Isto é, ninguém que usa a rede social pode pedir que os seus dados pessoais não sejam usados para fins publicitár­ios. “Isso seria um produto pago”, afirmou.

Aqui está o epicentro. Os cookies seguem-nos de site em site porque alguém tem de sustentar essas páginas que consultamo­s gratuitame­nte. Os vídeos têm anúncios lá no meio porque alguém tem de pagar pelo trabalho que deu fazê-los.

A ilusão de muitos consumidor­es é de que é possível pedir um produto de alta qualidade, que proteja totalmente a nossa privacidad­e e ao mesmo tempo seja gratuito. A fraude de muitas empresas é darem a aparência de que nos podem oferecer isso.

Do lado das empresas que transacion­am esses dados pessoais, a ausência de escrúpulos foi muitas vezes premiada com cresciment­o exponencia­l

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