“A AÇÃO POLÍTICA DOS ARTISTAS É FAZEREM O SEU TRABALHO”
Adriana, sabemo-lo pelo menos desde Esquadros, anda “pelo mundo”. No ano passado, esteve um semestre na Universidade de Coimbra, a dar masterclasses a auditórios repletos. Agora é o curso Como Escrever Canções que a ocupa até maio. Dá-o a um grupo de 20 alunos que vêm de sítios tão diversos como Engenharia Química ou Direito. Devemos a uma aluna a canção A Mulher do Pau-Brasil, que hoje abrirá o concerto no Centro Cultural de Belém. A cantautora explica aqui porquê. A Mulher do Pau-Brasil segue para Ponta Delgada e para o Porto, com Adriana a dar voz ao pensamento selvagem dos modernistas brasileiros, a clássicos seus ou de CaetanoVeloso, a Caravanas, de Chico Buarque, e, ao mesmo tempo, à cantiga de amigo em galaico-português de Martin Codax, Quantas Sabedes Amar Amigo, convidando: “E banhar-nos-emos nas ondas...” O Manifesto do Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, tem uma ideia muito forte de digestão, de síntese. Este concerto também é uma síntese deste tempo em Portugal? Exatamente isso. Eu gosto muito da ideia de síntese, poesia já é síntese. Oswald de Andrade está propondo uma poesia do jeito que a gente fala, do jeito que a gente é. Nos anos 20, quando ele propõe isso, as pessoas, alguns poetas, estão imitando os portugueses de oito séculos antes. Isso foi uma das coisas que me influenciou muito. E há a tradição dos estudantes brasileiros que vão para a Universidade de Coimbra, e de lá veem o Brasil de fora. Muitas ondas de independência do Brasil aconteceram com alunos que vinham para cá, para a Universidade de Coimbra, e voltavam. Aí começa uma ideia do Brasil. Fiquei pensando sobre toda essa história. Eu já tinha feito um show chamado A Mulher do Pau-Brasil, mas quando tinha, sei lá, 20 anos. Era de um outro ponto de vista, ainda muito deslumbrado com as ideias da deglutição. Agora é de alguém que ficou fazendo uma residência artística em Coimbra, dando aulas ao mesmo tempo. Que contributo é que os seus 20 alunos têm dado para tudo isto? Eles estão me estimulando muitíssimo, muito mais do que eu imaginava. Eles são muito exigentes, fazem perguntas muito difíceis, então eu tenho de ir para casa estudar. E era isso que eu queria: estudar, aprender mais do que ensinar. Que tipo de perguntas lhe fazem? Vou-te dar um exemplo bem bom. Nem foi uma pergunta, foi uma provocação que funcionou. Eu explicava que a gente não pode ficar satisfeito com qualquer coisa, que tem de ter um padrão de exigência, deixa as canções decantarem, passar tempo, ouve de novo... E aí eu falei: “Comecei uma canção a que chamei Mulher do Pau-Brasil , estou estreando um concerto com esse nome, e achei importante ter a canção. Comecei a fazer, mas não estou contente. Então é uma pena, estou estreando o concerto
que não tem a canção.” E aí uma aluna diz: “Engraçado... A gente tem de entregar a canção no dia 3, e você tem até ao dia 10 de abril para fazer a canção...” Aí eu fiquei com uma vergonha danada, sentei e fiz. Por causa da bronca que levei da minha aluna. Eles são músicos, vêm de cursos de Literatura, de sítios diferentes? Vêm de Angola, de diferentes lugares de Portugal e do Brasil; tem gente de 18 anos, de 38 anos; tem gente de Engenharia Química, de Direito, de Psicologia, das Letras... É incrível. Agora que se sentou para escrever essa canção A Mulher do Pau-Brasil, essa mulher é a Adriana, ou uma espécie de alter ego, como a Partimpim? Não. A Adriana Partimpim é outra artista. A Mulher do Pau-Brasil sou eu mesma, por muitos motivos. Os meus amigos começaram a perguntar-me assim: “Agora como é que a gente te chama? Comendadora [pelo estado de São Paulo]? Embaixadora da Universidade de Coimbra?” Eu falei: “A Mulher do Pau-Brasil.” É a coisa que melhor me revela. Aqui eu sou a Mulher do Pau-Brasil. As pessoas perguntam: “Você está ficando mais e mais portuguesa?” Não, eu estou ficando mais e mais brasileira. E aí me dei conta, por isso de estar em Coimbra, e por conhecer essa história dos grupos, das ondas, de independência do Brasil, fiquei pensando: será possível estar aqui nesse nível de conhecimento, estar dentro dessa instituição de conhecimento, estudando, e ao mesmo tempo manter o pensamento selvagem? E constatei que sim. Ter aprofundado tanto a relação com a palavra, com a poesia, liberta a voz quando canta ou dá-lhe mais peso? Ai! essa pergunta não é para mim. Eu é que tenho de fazer essa pergunta para você. Não sei. Faz muito tempo que eu não faço um concerto. Esse aqui é um concerto-tese. Ele é o produto da residência no ano passado. Eu continuo pensando sobre essas coisas, continuo lendo. Anteontem fiz uma canção que é possível que eu mostre. Eu encomendei aos meus alunos uma canção, em parcerias. E aí resolvi fazer também. Não avisei e só mostrei depois, quando eles mostraram as deles. Se eu me sentir segura eu mostro. Como era o exercício? Eu estava contando que as canções de amor não correspondido não são uma coisa inventada para as telenovelas. É um tema que vem da Grécia antiga, da Grécia arcaica. A palavra “arcaica”, como diz o professor Frederico Lourenço, nos soa a uma coisa obsoleta, mas “arcaico” é para localizar no tempo, porque não tem nada de obsoleto no que aconteceu na Grécia, e o tema do amor não correspondido vem de lá: os poemas de Safo, por exemplo. Eu estava explicando isso para eles e encomendei uma canção de amor não correspondido. Então fiz eu também uma. Canções como Vambora ou Esquadros vão mudando com o tempo? Vão. Nem sei no quê, mas vão. Não quero fazer um espetáculo didático, assustador. A Mulher do Pau-Brasil sou eu e as canções que eu tenho vontade de cantar agora. Simples assim. Quando ouviu As Caravanas do Chico Buarque há nem um ano apeteceu-lhe logo cantá-la? Nossa, nossa... Primeiro eu não acreditei que aquilo fosse possível. Fiquei ouvindo, ouvindo, ouvindo. Aquilo me remeteu para o impacto que eu tinha com as canções quando era adolescente, com o próprio Chico, o Caetano, quando eu descobri a canção com alta poesia. Quando eu ouvi As Caravanas, meu Deus, 2 minutos e 48 segundos para contar a história do Brasil. O poder de síntese elevado à máxima potência. Diz preferir não falar agora sobre a atual situação política do Brasil, mas enquanto estamos aqui no estúdio espera-se que Lula da Silva se entregue para ser preso, e a Adriana estava na Sorbonne, em Paris, quando Marielle Franco foi morta no Rio de Janeiro. Como é que acompanha tudo isto de fora? Na Sorbonne depois da aula que eu dei nevava loucamente, e eu fui até à frente da Ópera, onde tinha uma manifestação. Metade do metro estava em greve, mas eu me senti tão bem contra a neve, cortando a minha cara, para ir para a manifestação da Marielle: é esse trabalho de formiguinha, de estar presente, fazer alguma coisa. Mas a radicalização no Brasil é preocupante. Acho que era melhor discutir as questões do que ficar brigando sem ouvir ambos os lados. Vendo de fora, acho que estão acontecendo coisas que nunca aconteceram antes. 13 milhões de desempregados significa mais do que um Portugal desempregado. O estado do Rio de Janeiro está falido. Mas eu acho que tem um nível de engajamento das pessoas... Estão entendendo melhor o que significa o voto, o que se deve fazer com o voto. A nossa democracia é muito nova. E eu acho que o facto que tem celular, as pessoas registando coisas, em cima dos políticos, [assim] podem cobrar, podem entender, a transmissão de certas sessões do Congresso, dos tribunais de Justiça, do Supremo, tudo isso está dando para a população mais consciência do sistema político que precisa de ser modificado, reformado. Essa consciência política já passou para a música que se faz no Brasil? Acho que sim. Na verdade, eu tenho medo de dizer isso e parecer alienada, mas estou tão focada nas minhas coisas nesse momento que eu acho que a ação política dos artistas é fazer o seu trabalho. Qualquer ação é política. Você me perguntou se eu faço falta lá, acho que não. O que eu posso fazer é o que estou fazendo, a minha parte. Mas, com todas as dores, eu acho que a gente está andando. Acho que muito pior seria o país estar parado e estagnado com esse sistema político vigente. ADRIANA CALCANHOTTO APRESENTA A MULHER DO PAU-BRASIL Hoje às 21.00 (bilhetes entre 15 e 40 euros), no dia 21 no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada (entre 12,25 e 22,5 euros), e no dia 24 no Coliseu do Porto (de 17,5 a 45 euros)
“As pessoas perguntam: ‘Você está ficando mais e mais portuguesa?’ Não, eu estou ficando mais e mais brasileira” “É a coisa que melhor me revela. Aqui eu sou a Mulher do Pau-Brasil” “Esse aqui é um concerto-tese. Ele é o produto da residência [em Coimbra]no ano passado” “Não quero fazer um espetáculo didático, assustador. A Mulher do Pau-Brasil sou eu e as canções que eu tenho vontade de cantar agora” “Qualquer ação é política. Você me perguntou se eu faço falta lá [no Brasil], acho que não. O que eu posso fazer, estou fazendo”