Sou ateu e quero uma Igreja forte
AIgreja que quero forte é a maioritária no meu país: a Igreja Católica Apostólica Romana. Sou ateu, não acredito na existência de um Deus (ou vários), acredito na autonomia do homem, na natureza, no conhecimento científico e que o que sobra quando morremos é pó e a memória que os outros guardarão de nós. Mas, mesmo sabendo que Deus não existe, sei também outra coisa: a Igreja existe. E, mesmo assente naquilo que eu simpaticamente posso admitir como um grande equívoco, é melhor que continue a existir – e forte. Forte para os nus e para os esfaimados do mundo, para os excluídos e para os que não têm outro remédio. Mal ou bem, para estes. Caridadezinha ou humanismo grande – que salve pessoas, é o que interessa.
Vêm aí decisões sobre a despenalização da eutanásia, no Parlamento. Afirmo-me desde já favorável. Admito o direito de alguém em dor e sofrimento, lúcida e plenamente informado, por decisão rigorosamente própria, perante uma doença clinicamente incurável, ter direito a que alguém de forma voluntária e medicamente competente lhe ponha fim à vida. Acontece que não tenho certezas sobre isto – e duvido que alguém verdadeiramente possa ter. Há nas circunstâncias de alguém que pede morte assistida mil e uma razões que me podem levar a ter dúvidas. E nenhuma lei as poderá prever todas, para lá de qualquer dúvida.
Regresso à Igreja Católica Apostólica Romana. Que saiba, estabeleceu desde o topo – começando pelo Papa Francisco – que esta é uma linha vermelha que não admite ultrapassar. Recusa em absoluto a possibilidade da morte assistida. Advoga que se prolongue a vida paliativamente para lá da vontade do doente querer morrer (porque não lhe admite a possibilidade de decidir sobre a sua vida). Dizendo (como disse a Conferência Episcopal portuguesa, numa nota pastoral de março de 2016), algo que, mesmo dentro das minhas convicções pró-eutanásia, me parece igualmente evidente: “Nunca pode haver a garantia absoluta de que o pedido de eutanásia é verdadeiramente livre, inequívoco e irreversível.”
“Irreversível” é a palavra-chave. Pode a alguém em dor e sofrimento ser dado o direito de uma decisão irreversível sobre a sua própria vida? Será a lucidez possível nesta circunstância?
A Igreja Católica Apostólica Romana portuguesa que quero forte (e de que gosto) é uma igreja social, que trabalha para os excluídos – uma igreja concretamente útil à comunidade. Mas para afirmar a sua força e a sua eficácia neste campo precisa de causas que lhe afirmem uma identidade própria sobre a totalidade das questões da sociedade. Ou isso ou não será mais do que uma grande IPSS.
Dito de outra forma: era preferível que o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, pudesse não se perder com tiros nos pés como a polémica (desumana) dos “recasados”, começando a falar claramente contra a eutanásia e orquestrando todas as suas forças nesta batalha. Porque faz a sua organização mais forte e porque há muita gente aberta a ouvir as dúvidas que inteligentemente lhes pode colocar. Sou só um – mas sei que há mais.