“Queria ser conhecida por Lucibela, não alguém que faz noites num bar”
Laço Umbilical marca a estreia da cantora cabo-verdiana em nome próprio. Amanhã apresenta-se no Estúdio Time Out mas talvez já a tenha ouvido no B.leza, onde começou por cantar quando chegou a Portugal, há dois anos
“Se eu quisesse só cantar em bares e restaurantes a vida toda, cantava o reportório de alguém, mas eu queria mais. Quando cantas a música das outras pessoas, se queres falar sobre alguma coisa, não tens por onde pegar. Agora que gravei o meu CD posso explicar porque é que escolhi as músicas, porque é que pus tal música, porque é que a pedi ao compositor. Agora eu já posso falar do meu disco. Queria ser conhecida por Lucibela, e não alguém que faz noites num bar.” Um nome apenas: Lucibela. A voz é antiga, apesar de ela ainda não ter feito 32 anos e de Laço Umbilical ser o seu álbum de estreia. Amanhã vai cantar essa ligação umbilical com a “mãe terra”, Cabo Verde, no Estúdio Time Out, no Mercado da Ribeira, em Lisboa.
A sua vida perfaz uma rota por boa parte do arquipélago. Lucibela nasceu em São Nicolau, depois mudou-se para SãoVicente, de onde partiu para o Sal, e, por fim, Santiago. Hoje vive na Reboleira, Amadora, e diz que Lisboa não é assim tão diferente do seu arquipélago. Talvez já a tenha ouvido no B.leza, onde começou por cantar uma vez por semana assim que chegou a Portugal, há dois anos, ou no Terreiro do Paço, onde atuava com o grupo Nos Raiz. “Passei a cantar todos os dias à tarde ali, ao sol, ao frio, duas a três horas por dia, e só música tradicional.” E a voz cansava-se, perguntamos-lhe, perto do Mercado da Ribeira, numa manhã de sol. “Acho que quanto mais se canta melhor está a voz”, responde num sorriso.
Enquanto Lucibela crescia a cantar Tom Jobim, Adriana Calcanhotto, ou Só Pra Contrariar, a mãe cantava pela casa músicas tradicionais de Cabo Verde, com a voz a evocar Bana ou Cesária. Ela não ligava e não se dera ainda conta de que havia esse laço umbilical tão forte que Betu falaria dele na canção que escreveu para ela, e que dá nome ao disco. Hoje, tudo isso está claro para Lucibela, que canta Dona Ana, de Manuel de Novas, a pensar na mãe. “Criou-nos sozinha, trabalhou dia e noite sem descansar para podermos ter tudo.” Se ela estivesse viva, a cantora teria provavelmente tirado um curso de Economia, conta. “Sei isso direitinho, ela queria que a gente se formasse, que fosse alguém na vida”, conta a mais nova de cinco irmãos, a kodê , diz-se em crioulo.
Voltamos atrás no tempo com Lucibela, e vemo-la na escola, de auscultadores postos nos intervalos das aulas, a cantar, com os colegas a dizerem-lhe que tinha uma grande voz, e ela sem fazer caso. É então que o seu professor de Informática a convida para fazer parte da sua banda, e Lucibela começa a cantar música tradicional em bares do Mindelo. “Percebi que já conhecia, por já ter ouvido muitas músicas na rádio, e a minha mãe a cantar.” “Comecei a cantar depois de ela falecer por dois mo- tivos: primeiro, porque sempre gostei, e depois porque ganhava algum dinheiro, e dava-me jeito. Os meus irmãos foram para o Sal trabalhar. Eu fiquei por um ano para terminar o 12.º. Cantava de noite. Fui-me metendo na música e já não quis saber de outra coisa.”
Mário Lúcio, Betu, Nhela Spencer, Elida Almeida ou Jorge Tavares Silva são alguns dos compositores que construíram este Laço Umbilical. “Gosto sempre de perguntar ao compositor da música o que é que ele quis transmitir com ela”, explica Lucibela, que se apropriou de cada uma, e as canta como se há muito as ouvisse. Chica di Nha Maninha, que abre o disco, uma canção tradicional de autor desconhecido, veio ter com ela, quando participou numa homenagem a Alcides Nascimento, filho de Bana. Assentou bem na sua voz, e não a largou. Ali num lamento, em Mal Amadu, de Elida Almeida, numa ordem: “Oh mal amadu/ Sai fora di nha vida.”
Chegamos, por fim, ao nome que se fez paragem obrigatória: Cesária Évora. Perguntamos-lhe se lhe incomodam as comparações que têm feito entre as duas. “Não é uma coisa que me afete. É inevitável, pelo menos no início. As pessoas não conhecem tantos cantores cabo-verdianos assim. Em Cabo Verde já é mais natural as pessoas ouvirem-me, e não me compararem com a Cesária.” Voltamos, então, à sua terra, ao laço umbilical. Lucibela diz que não lhe faz falta estar lá para cantar o seu país. “Para onde for vou levar essa vivência, essa maneira de cantar. Quero levar a música de Cabo Verde para o mundo todo.” Mesmo que isso acorde esse animal chamado Sodadi Casa, como canta na música composta por Mário Lúcio. Ela aguenta: tem Bélgica, França (onde neste ano atuou no Festival au Fil des Voix, em Paris) e Turquia pela frente.
Mário Lúcio, Betu, Nhela Spencer, Elida Almeida ou Jorge Tavares Silva são alguns dos compositores de Laço Umbilical