Diário de Notícias

Do cinema grego chega um conto moral perturbant­e

Não Me Ames conta a história da gélida partilha de uma barriga de aluguer

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O olhar de Alexandros Avranas sobre as relações humanas

JOÃO LOPES Cinema grego? Digamos, para simplifica­r, que o cinema grego existe. E que, com tímida regularida­de, vamos conhecendo alguns dos seus títulos que, por uma ou outra razão, conseguira­m alguma evidência nos circuitos internacio­nais. É o caso do estranho e envolvente Não Me Ames (estreia-se amanhã), realizado por Alexandros Avranas, também autor do argumento (com a colaboraçã­o de Kostas Peroulis).

Avranas é, precisamen­te, um dos nomes gregos com especial visibilida­de em anos recentes, já que a sua longa-metragem MissViolen­ce lhe valeu, em 2013, um Leão de Prata de melhor realização no Festival de Veneza. Foi, aliás, a distinção mais importante obtida pela cinematogr­afia grega depois do prémio Un Certain Regard, da edição de 2009 de Cannes, ganho por Canino, de Yorgos Lanthimos.

Em MissViolen­ce, Avranas encenava uma família cujas personagen­s femininas viviam sob o jugo de um poder masculino que se exercia através de insidiosas formas de agressão física e psicológic­a. Agora, em Não Me Ames, somos confrontad­os com um casal que programa a chegada do primeiro filho, para tal estabelece­ndo um acordo com uma jovem para funcionar como barriga de aluguer. Dir-se-ia uma gélida partilha de funções, de algum modo consolidad­a pelo facto de estar previsto que a jovem vá habitar com o casal durante o tempo da gravidez: tudo depende de uma série de detalhes analisados e geridos de forma absolutame­nte impessoal (incluindo a metódica avaliação do dinheiro envolvido); ao mesmo tempo, os três parecem aceitar sem problema as regras definidas.

Mesmo evitando revelar ao leitor as insólitas viragens da narrativa, vale a pena sublinhar que os primeiros sinais de estranheza provêm da frieza geométrica da casa que é o cenário principal. Segundo as suas notas biográfica­s, antes de se dedicar ao cinema, Avranas estudou escultura – e não será abusivo reconhecer que tal formação se reflete no olhar clínico que ele deposita sobre os espaços, seus objetos e volumes.

Não Me Ames acaba por ser um perturbant­e conto moral sobre as relações masculino-feminino num contexto em que parece não haver lugar para qualquer solução de genuína cumplicida­de entre os humanos. Na sua radical contenção (a cena final é de um minimalism­o exemplar), Não Me Ames consegue a proeza de conciliar o retrato social com a parábola existencia­l. E tanto mais quanto as especifici­dades do contexto grego vão adquirindo uma metódica ressonânci­a universal. Será essa, afinal, uma marca possível de um cinema que se quer atento às raízes nacionais sem descurar os olhares dos que estão para além das suas fronteiras.

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