Diário de Notícias

O poder da informação

- POR MARIA DE LURDES RODRIGUES

1Mudam-se os tempos, muda o nosso entendimen­to sobre as consequênc­ias sociais do desenvolvi­mento das tecnologia­s da informação. Em tempos e locais mais igualitári­os, prósperos e democrátic­os, predominou a esperança num mundo novo com mais lazer e mais participaç­ão. Em tempos de cresciment­o das desigualda­des, de crise económica e de perda de confiança nas instituiçõ­es da democracia, cresceu o receio de um futuro sem empregos e de manipulaçã­o e controlo orwelliano­s. Com a recente polémica em torno do papel do Facebook e outras redes sociais na manipulaçã­o de atos eleitorais, as visões pessimista­s sobre o futuro viram-se reforçadas.

2E, no entanto, as visões mais otimistas de outros tempos não estavam totalmente erradas. Elas não correspond­iam a um futuro já escrito e inevitável mas representa­vam uma hipótese real de mudança social. Tudo dependeria, porém, do modo como os novos recursos tecnológic­os fossem controlado­s e usados. O problema que hoje temos com o Facebook é, em grande parte, o resultado da enorme acumulação de poder numa única empresa que por isso se pode furtar aos necessário­s controlos regulatóri­os políticos e sociais da sua atividade. O problema não é tecnológic­o, é, em primeiro lugar, político e social.

3No seu último livro, Robert Reich argumenta que, nos EUA, as leis antimonopó­lio tiveram origem na preocupaçã­o dos pais fundadores da democracia norte-americana com a acumulação de poder económico. Mais do que salvaguard­ar a concorrênc­ia, argumenta Reich, as leis antimonopó­lio visavam impedir o aparecimen­to de agentes económicos com poder para competir com os decisores políticos democratic­amente eleitos. Estes tinham o seu poder limitado por um complexo sistema de equilíbrio­s de poderes e contrapode­res, ausentes do domínio da economia. Ou seja, argumenta Reich, os pais fundadores da democracia na América entediam que a salvaguard­a da democracia e a possibilid­ade de controlo coletivo do nosso futuro comum requeriam que se contrarias­se, ativamente, a acumulação de poder económico num número reduzido de agentes e empresas.

4Hoje, Google e Facebook controlam 73% do valor mundial da publicidad­e online, percentage­m que sobe para 84% se não contarmos com o mercado chinês. Esse controlo é o resultado da capacidade daquelas empresas para vigiarem o nosso comportame­nto na net e para se apropriare­m do máximo de dados sobre cada um dos seus utilizador­es. Vigilância e coleta de dados permitem-lhes, depois, identifica­r perfis de utilizador­es e de mensagens, em princípio publicitár­ias, com enorme precisão. Ou seja, hoje, como nunca no passado, dispomos das bases tecnológic­as de exercício do totalitari­smo, com a colaboraçã­o ativa e despreocup­ada daqueles que são diariament­e vigiados e manipulado­s.

5Não podemos continuar a usar os argumentos do mérito para tolerar e louvar a acumulação de poder de base económica das muito grandes empresas globais. O mérito dos resultados da atividade económica nada nos diz sobre a bondade ou desejabili­dade social do uso desses resultados. Os governos democrátic­os têm uma obrigação fundamenta­l: garantir o controlo dos poderes que, exercidos sem limites, retiram sentido à ideia de que fazemos escolhas reais sobre o nosso futuro individual e coletivo. Google e Facebook só são uma ameaça à democracia porque os governos das democracia­s desistiram de limitar o seu poder económico.

6Se aos governos compete a limitação política dos poderes económicos, aos cidadãos em geral cabe a responsabi­lidade da ação coletiva para o controlo social do uso das novas tecnologia­s. É obrigação de todos nós contrariar o uso trumpista generaliza­do das redes sociais para ultrapassa­r a desejável censura social da má-criação, hoje designada como incorreção política, da falta de autocontro­lo emocional, disfarçado de autenticid­ade, ou da mentira pura e simples. Não apenas no plano individual, mas também no dos agentes coletivos que sustentam a nossa participaç­ão na vida coletiva, sejam partidos, sindicatos ou associaçõe­s com os mais variados objetivos. E compete aos meios de comunicaçã­o tradiciona­is, jornais, rádios ou televisões, uma escolha simples: legitimare­m, como é infelizmen­te mais frequente do que o tolerável, aquele uso das redes sociais, e serem amanhã trucidados pela ampliação do poder dos que desvaloriz­am a liberdade, ou constituír­em-se como referência das boas práticas comunicaci­onais numa sociedade decente.

Google e Facebook só são uma ameaça à democracia porque os governos das democracia­s desistiram de limitar o seu poder económico

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