Diário de Notícias

O jogo está a meio

- JOÃO ALMEIDA MOREIRA, São Paulo JORNALISTA

Um conflito entre um herói e um vilão é condição essencial das tragédias clássicas, mas tragédia a sério é quando entram em conflito dois protagonis­tas essencialm­ente bons.

Depois de séculos sob o jugo de governante­s preocupado­s em satisfazer os interesses da meia dúzia de sempre, em 2003 os brasileiro­s elegeram um presidente que cuidou de todos, incluindo daquela meia dúzia de sempre.

Depois de séculos sob o império da impunidade, onde todos podiam ir parar à prisão menos aquela tal meia dúzia de sempre, em 2014 os brasileiro­s beneficiar­am de uma operação policial que condenou quase todos, incluindo boa parte daquela meia dúzia de sempre.

Lula e Lava-Jato são, pois, essencialm­ente bons.

O pecado de Lula foi original: contou em entrevista ao DN Miro Teixeira, o mais antigo deputado do país, que logo em 2002, semanas depois da eleição do primeiro governo Lula, do qual ele fez parte, alguém perguntou: “E agora, só com 90 deputados do nosso lado, num total de 513, como faremos para governar?” Gerou-se outra pergunta: “Conquistam­os os deputados pela força dos nossos projetos ou pela força do dinheiro?” Uma pergunta retórica, claro, dado o nível moral dos parlamenta­res brasileiro­s. E assim nasceu o mensalão, uma mensalidad­e para os deputados com dinheiro público em troca da aprovação de projetos.

Mas num sistema – ou mecanismo, como está na moda chamar-lhe – podre por natureza, os esquemas ilegais são os que têm mais hipóteses de prosperar. Lula pôde governar sem sobressalt­os, aprovando programas sociais que tiraram 50 milhões da pobreza extrema, criando 12 milhões de empregos, fundando 28 universida­des acessíveis a todos e diminuindo em 10% a mortalidad­e infantil, graças ao infame mensalão. Com um salário extra garantido e acesso a nacos do poder público distribuíd­os pelo governo, os deputados e outros poderosos que em condições normais jamais se preocupari­am com o povo votaram alegrement­e pelo Bolsa Família e afins porque de barriga cheia até as hienas se tornam adoráveis.

Mais tarde, com o fim do mensalão e a revelação do seu irmão ainda mais monstruoso, o petrolão, e a chegada de Dilma Rousseff e das vacas magras, as hienas voltaram a ser hienas. E Lula, que de tão adaptado às regras do jogo se deixara contaminar por elas, acabou apanhado por causa de um favorzinho em forma de apartament­o, afinal um grão de areia num universo de favorzões.

Vendo Lula fraco, a atrasada elite brasileira, que nunca tolerou ver um torneiro mecânico a frequentar os salões dela, a beber o vinho francês dela e a aprender a desviar dinheiro como ela, incentivou a Lava-Jato a caçá-lo. E em tempo recorde, não vá ele voltar a mandar.

À Lava-Jato, que ao longo do seu corajoso e histórico caminho já prendeu políticos influentes e príncipes da alta finança, falta agora calibrar a mira. Porque para já, o que ela produziu na prática de resultados políticos foi a queda de uma presidente e a prisão de um candidato à frente das sondagens, ambos do mesmo partido.

O PSDB, rival do PT, continua incólume – apesar de Aécio Neves, o candidato que a visionária elite acolheu em 2014 no seu colo para acabar com a corrupção (!?), ter sido gravado a pedir dinheiro a um criminoso. E o MDB, sócio de todos os crimes e maior cancro da nação, ainda mantém sentado no Palácio do Planalto um cadáver político que recebe corruptos na surdina. E a quem pede para manter o silêncio de criminosos. E cujo assessor especial anda a correr pelas ruas com malas de dinheiro entregues pelo braço direito daquele mesmo corrupto. E que, ao que tudo indica, favoreceu empresas amigas na exploração do porto de Santos.

“A Lava-Jato é tão extraordin­ária que até prendeu pela primeira vez um antigo presidente do Brasil”, leu-se por aí. Não é verdade, antes de Lula já quatro ex-presidente­s, Hermes da Fonseca (1922), Washington Luiz (1930), Artur Bernardes (1932 e 1939) e Juscelino Kubitschek (1968), haviam sido detidos. A LavaJato será, definitiva­mente, extraordin­ária se Lula não tiver sido o último ex-presidente que prendeu.

Vendo Lula fraco, a atrasada elite brasileira, que nunca tolerou ver um torneiro mecânico a frequentar os salões dela, a beber o vinho francês dela e a aprender a desviar dinheiro como ela, incentivou a Lava-Jato a caçá-lo

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