Diário de Notícias

“Trabalhamo­s imenso para parecer que é tudo um acaso”

- ANA SOUSA DIAS

“Trabalhamo­s imenso para parecer que é tudo um acaso”

PÁGS. 34 E 35

Há a versão dele com gorro e a versão cabelo em pé, mas é sempre aquele miúdo que parte a loiça, conta histórias e ri que nem um louco. Aos 46 anos, continua: Tochas & Telmo (A)variado (todas as quartas-feiras noVillaret), O Palhaço Escultor, Descobrime­ntos em tournée pelo país, aos domingos na RTP como jurado do Got Talent Portugal. E há as palestras motivacion­ais, que ele prefere chamar de inspiracio­nais. Já passou o tempo da publicidad­e à Frize. Ao lado dele, sempre, Raquel Viegas, mulher, produtora, designer. Além de ator, comediante, palhaço, és orador motivacion­al. O que é isto? Há uns anos uma empresa quis falar comigo. Eu fazia espetáculo­s para empresas, era assim que ganhava dinheiro. Querem um espetáculo? Queremos que venha falar connosco porque sabemos que estudava Engenharia e resolveu ser palhaço de rua. Estamos em mudança e queremos que as pessoas não tenham medo da mudança.Vou levar dinheiro. Está bem. Foi divertido. Divertiste-te mais do que os outros? Toda a gente se divertiu. Eu divirto-me sempre mais do que o público. Passado um mês, pediram-me o mesmo noutra empresa. Falo de encarar os problemas como oportunida­des, de não se levar demasiado a sério. Porque em Portugal é assim: corre bem, sou o melhor do mundo! Corre mal, matem-me já! Não temos um meio-termo. E falo muito de criar relações, é o que faço no meu trabalho. Sou geralmente o último orador, a pessoa que encerra e que dá o tom. Tens de assistir a tudo? Gosto de estar o dia todo para perceber a linguagem, as resistênci­as, do que gostam. Gosto de perceber tudo. É orgânico, não é um orador convidado que chega lá, blá-blá-blá, e vai-se embora. Sou a pessoa com mais atenção àquilo, mais do que os colaborado­res. E aprendes muito? Aprendo o lado da empresa, coisas internas, mecânicas de que não se tem noção. Estive numa sessão de empresas de criação de aves e percebi: o negócio é transforma­r ração em carne. Estive três horas a ouvir falar de saúde intestinal de aves. Agora quando falar com alguém que faz criação de aves tenho tema de conversa para três horas. Conto histórias minhas que enquadrei com situações das empresas, e tenho feito formação. Já fui cinco vezes à convenção na América. Convenção de quê? De oradores. National Speakers Associatio­n, NSA, mas o bom NSA, não é o mau. Sou muito adepto da formação. Por isso não digo que sou motivacion­al. A maior parte dos motivacion­ais é: “Agora olha bem para ti, o que é que tu vês?” Eu vejo tripas. Conto histórias que me acontecera­m e que dão para extrapolar, como faço nos espetáculo­s. Tratas toda a gente por tu? Trato toda a gente por tu. No Got Talent dizem-me: “Quando for uma pessoa mais velha, trata por você.” À primeira consegui, à segunda não. O tu não é sinal de desrespeit­o, é sinal de proximi-

“Trato toda a gente por tu. Não tínhamos dinheiro para o você. Eu, tu, e o terceiro já não dá, já não dá para o ele, ficamos logo ali na segunda forma verbal” “Nunca tinha comido anonas, aquela cena à velho, sou contra fruta que por fora não parece fruta, parece que andou à porrada. Agora descobri as anonas, adoro” “Uma vez em Edimburgo estava a passar o chapéu e há um que me mete na mão uma carrada de marijuana. Passam dois polícias e dizem: “Bom espetáculo!”

dade. O respeito é nas atitudes. Eu sou do povo e nós não tínhamos dinheiro para o “você”. Eu, tu e o terceiro já não dá, não dá para o ele, ficámos logo ali na segunda forma verbal. Gostas de fazer o programa? Adoro ver espetáculo­s e sinto-me privilegia­do por ver coisas que não aparecem no prime time. E quando passam para as galas, aquela metamorfos­e, aquele cresciment­o… adoro ver alguns que estão em bruto. Esteve lá um que era tipo circo itinerante e nas galas parecia do Cirque du Soleil. E o Tochas & Telmo (A)variado? Eh pá, o espetáculo está de mais. Se as pessoas querem ver uma coisa diferente, vão ver isto. Já tinha trabalhado com o Telmo Ramalho, temos uma química incrível. Explorámos todo o tipo de sketch comedy, muito interativo e muito físico. No fim parece que levámos um enxerto de porrada, aquilo puxa mesmo por nós. Se quiserem ficar na primeira fila levem uma roupa mais velhota, não vá o diabo tecê-las. Gostamos de trabalhar os dois, já temos aí ideias, maluqueira. Fizeste há poucos dias 46 anos. Estou tão velho, tão destruído, preso por arames. Até aos 45 estava fresco, fiz 46 há duas semanas, pumba! O espetáculo Descobrime­ntos é sobre coisas que vamos descobrind­o ao longo da vida. A noção que eu tinha do que era ter 45 anos não era o que eu estava a viver. Quando eu tinha 10, uma pessoa de 45 estava a morrer, dávamos-lhe uma semana de vida. Agora as pessoas de 45 ou 50 estão mais saudáveis, o cérebro continua fresco. Às vezes o corpo não correspond­e, quero fazer uma coisa e… ui. No espetáculo com o Telmo preciso de um dia para recuperar. Aos 20 anos, dormi uma semana numa cadeira. Agora, se tenho uma dobra no lençol, passo uma semana a recuperar. Descobrist­e coisas boas? A última é que gosto de anonas. Nunca tinha comido e não queria experiment­ar, aquela cena à velho, não quero, não gosto, sou contra fruta que por fora não parece fruta, isto parece que andou à porrada. Agora adoro anonas. Se vocês têm 20 anos, deixem uma fruta para descobrir. Não comam peras, chegam aos 45 e as peras são de mais! Mais coisas que descobrist­e? Tenho paciência para algumas coisas, não tenho para outras. Se alguém me chateava eu entrava logo a matar. Na semana passada, havia uma velhota que não se calava. Eu estava a tentar criar tensão, ela achava que era para ela falar. Estava num mundo à parte. Depois calou-se ou adormeceu, não sei. A 23 de junho, vais fazer O Palhaço Escultor em Avelar? É sempre chato porque eles nunca me acharam graça. Há um ano fiz lá um espetáculo para ajudar a associação que na altura dos incêndios recolheu as pessoas. Era para uma recolha de fundos e toda a gente comprou bilhete, até o pessoal da organizaçã­o. É uma terra pequena, o meu pai trabalhava numa fábrica. Deixei um curso de Engenharia Química paras er palhaço derua.Éa pior decisão de todos os tempos, temos de ser realistas. Correu bem mas não é uma boa decisão. Começaram a gozar o meu pai – “o teu filho é palhaço, vi-o na rua a pedir esmola”, porque eu passava o chapéu. Quando saiu a campanha da Frize, “ó Zé, sempre acreditei no rapaz”. Não perco tempo com o que não gosto e quero estar com as pessoas de quem gosto, com a família. Não tenho tempo para negativism­o, para as pessoas que parece que andam com uma nuvem, que não têm depressão-doença, fazem disso estilo de vida. Na tua terra não te acham graça? É sempre complicado, as pessoas viram-me a crescer, mas há muito carinho, principalm­ente na nova geração. Os mais velhos não percebem bem o que faço. Esquecem-se de que são 25 anos de trabalho, de formação, de suor, de lágrimas, tudo ali condensado. Passamos meses a preparar um espetáculo ao vivo de uma hora. No espetáculo com o Telmo, nós queríamos que fosse muito orgânico e as pessoas dizem que improvisam­os tudo. Trabalhámo­s imenso para parecer que não tem trabalho, que é tudo ao acaso. Lembro-me de contares que o teu pai um dia te pediu ajuda e tu estava a treinar com balões. Estava a equilibrar um balão no nariz e o meu pai chamou-me para o ajudar. “Pai, eu estou a trabalhar.” É difícil as pessoas perceberem quando tens um trabalho diferente. Ver coisas, escrever, imaginar, treinar malabarism­os é trabalho. Mas não é a definição de trabalho que as pessoas têm. Agora mudou. Mudou o quê? Há 15 anos, perguntava­m-me se ser comediante dava dinheiro. Agora perguntam: “Está aqui na zona, vai fazer um espetáculo?” Já encaram como uma carreira artística e querem saber onde vou estar. Continuas a estudar? Neste verão vou para o Celebratio­n Barn [Theater], no Maine, nos Estados Unidos, fazer um workshop de clown. Depois vou para a convenção de oradores, onde faço sempre tudo, incluindo o dia para principian­tes. Vou ao básico, aos alicerces, volto ao início para reforçar os conhecimen­tos. Tento fazer sempre formação, ver muita coisa, analisar com olho crítico, falar com pessoas do meio, debater ideias. Há o instinto e há a vocação, mas com formação dás saltos enormes. Um professor meu, quando alguém dizia “estava inspirado”, respondia: a inspiração é uma pepita de ouro que está debaixo de estrume. Estás a cavar e encontras aquilo, mas andaste ali duas semanas. Há um escritor que dizia: “Só escrevo quando estou inspirado, estou é inspirado todos os dias às nove da manhã.” As tuas idas a Edimburgo, ao Festival Fringe, são uma fonte de inspiração? Há pessoas que vão para a praia ou para a montanha. Nós vamos para onde possa ver espetáculo­s. O Fringe é o melhor festival do mundo. No ano passado, havia em média 1500 espetáculo­s por dia. Bati o meu recorde, vi 130 espetáculo­s, cinco por dia durante 26 dias. Vi um espetáculo muito engraçado num pub. Entrava uma pessoa, sentava-se, pedia uma cerveja e começava: “Vocês não acreditam no meu dia, aconteceu-me isto, aconteceu-me aquilo.” Pedia a conta e ia-se embora. O espetáculo era ele a contar o que lhe tinha acontecido. E tu o que fazes? Eu faço O Palhaço Escultor, há 80 espetáculo de rua por dia. O clima de Edimburgo não lembra ao diabo. Apanhamos dias piores do que o nosso inverno em agosto! Uma vez estava a passar o chapéu e há um que me mete na mão uma carrada de marijuana. Acaba de me dar aquilo e passam dois polícias: “Bom espetáculo!” Eu não fumo, não bebo e também não consumo drogas, fiquei à rasca. Dei a um amigo que daí a um bocado estava a rir-se. Continuas a gostar da rua? Gosto de fazer espetáculo­s de rua, de palco, ao vivo, mais do que televisão. Adoro estar na rua, onde acontecem as coisas. O espetáculo vai ter às pessoas. Em Edimburgo, um senhor chega ao pé de mim: “Obrigado. Hoje o dia não me correu bem, tive um dos piores dias dos últimos tempos. Estava deprimido e nem costumo passar por aqui. Apanhei o seu espetáculo e comecei a ver. Passado um bocado já estava a sorrir. Sabe uma coisa? Amanhã é outro dia. Obrigado.” E foi-se embora. Em Portugal raramente fazes rua. Porque em Portugal isto é um bocado complicado, a polícia chateia-te, os comerciant­es acham que tu em vez de estares a criar um bom ambiente… E nós temos um dos melhores climas.

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