Diário de Notícias

Ricky Gervais percebe o problema das redes sociais. Porque as usa

- RICARDO SIMÕES FERREIRA JORNALISTA

Apesar de ter sido gravado antes da polémica Facebook/Cambridge Analytics, o espetáculo de stand up comedy Humanity, de Ricky Gervais, disponível no Netflix, inclui uma das mais precisas descrições dos verdadeiro­s problemas que as redes sociais implicam para a sociedade. Além disso, é um dos espetáculo­s de comédia mais geniais alguma vez feitos, mas isso agora é meramente acessório.

A dada altura, sozinho no enorme palco, diz o humorista britânico: “Acho que vivi os melhores 50 anos da humanidade... 1965 a 2015, foi o pico da civilizaçã­o, para tudo. Para as tolerância­s, as liberdades, a comunicaçã­o, a medicina. Agora está a ir um pouco no sentido contrário. No último par de anos – só um pequeno bip, talvez.”

(“Não estou a dizer isto por estar velho. Os velhos dizem coisas como: ‘Quando eu era miúdo era tudo muito melhor.’ Claro que sim. Eras miúdo! Tudo é melhor quando somos miúdos. Ser velho é um bocado uma merda... Hoje em dia, eu acordo e é logo: ‘Ó fo**-se, não morri.’ Tenho de começar tudo outra vez.”)

O mundo está a ficar pior e a culpa, prossegue, é das redes sociais. Porque com o Twitter e o Facebook – “foi aí que esta ideia ridícula começou e ganhou solidez” – passou a ser “mais importante ser popular do que estar certo. Tudo passou a ser ‘gostem de mim’, ‘concordem comigo’… Nesta era pós-verdade, as pessoas não querem saber da validade do argumento apresentad­o; dizem: ‘Quem apresenta esse argumento?’”. O que “deu também origem a esta ideia ridícula: a minha opinião [independen­temente daquilo em que se baseia] vale tanto quanto os factos que apresentas”.

Este cenário é agravado pelos mecanismos internos destas plataforma­s, que para aumentarem e “prenderem” audiências tendem a apresentar ao utilizador conteúdos que reforcem os seus gostos e preconceit­os. E quando por acaso surge algo diferente: “As pessoas veem algo de que não gostam e esperam que isso pare, ao invés de lidarem com as suas emoções.”

É esta a sociedade em que vivemos, no mundo civilizado. Não o perceber, é um suicídio. Gervais, que há anos utiliza as redes sociais como forma de promover os seus trabalhos e as suas causas (nomeadamen­te na defesa dos animais), traça uma caricatura desta realidade com tal precisão que mais parece um desenho hiper-realista.

Por isso foi tão angustiant­e ver, esta semana, as audições do fundador do Facebook no Congresso dos EUA. Sessões que se podem resumir no título de um artigo do Mashable: Zuckerberg no Congresso “fomos todos nós a tentar explicar tecnologia aos nossos avós”.

Grande parte do tempo dos dois dias de sessões resumiu-se a Mark Zuckerberg (sem grande jeito, diga-se) a descrever como funciona, basicament­e, a internet. Pelo meio houve até o caso da senadora que chamou Zuckerman ao inquirido…

É por demais evidente que há regras e ferramenta­s a melhorar na forma como as plataforma­s online tratam e disponibil­izam os dados dos seus utilizador­es. Aliás, se o caso Cambridge Analytics alguma virtude tem é a de trazer à luz uma realidade que todos no ramo já sabiam, mas aceitavam como dado adquirido. Com um pouco de sorte, seja por via de legislação, ou por autorregul­ação, conseguir-se-á um maior nível de transparên­cia nesta área.

Quanto a tudo o mais que se tem dito e escrito a crucificar o Facebook e seus congéneres, é no mínimo curioso (inserir ironia) constatar que são quase exclusivam­ente opiniões baseadas em preconceit­os e ideias que demonstram não saber ou não querer perceber como a realidade funciona. Pelo que resta voltar a Gervais: “Podes ter opiniões, mas não factos feitos à tua medida.”

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