Diário de Notícias

O que há no nome desta escola? Uma vida dedicada à terapia da fala

Alcoitão. Gracinda Valido é terapeuta da fala no Centro de Medicina de Reabilitaç­ão de Alcoitão, da Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa. Depois de ter entrado por acaso no curso, acabou por descobrir aí a paixão de uma vida. Além disso, a profissão acabo

- ANA BELA FERREIRA

“Ch-ch-chocolate. Treme ou não treme?” A pergunta de Gracinda Valido é para Pedro, de 6 anos, que tem dislexia. O treme ou não treme é medido com a mão na garganta porque tem que ver com a vibração do som. Faz parte do método Habilis, que a terapeuta da fala e as colegas do Centro de Medicina de Reabilitaç­ão de Alcoitão criaram para ajudar as crianças com dislexia.

Além de criar este método de aprendizag­em – “uma espécie de próteses que os ajudam a distinguir os sons”, explica a terapeuta –, Gracinda criou um sistema de diagnóstic­o para identifica­r os vários tipos de dislexia. “Os disléxicos são para mim dalsónicos. Como os daltónicos não identifica­m cores, os disléxicos não identifica­m os sons”, acrescenta.

O problema da dificuldad­e de diagnóstic­o surgiu-lhe com o seu próprio filho. Gracinda começou a trabalhar como terapeuta da fala em Alcoitão, em janeiro de 1981, e seis anos depois nasceu o seu primeiro filho, Rui – a quem, na escola primária, foi diagnostic­ada “dislexia grave”.

“Achava que tudo se podia fazer em Portugal, até que tenho um filho e constato que há tanto para fazer. Não consigo identifica­r provas que mostrem onde é que o meu filho falha. Tenho provas estrangeir­as, mas para a população portuguesa não”, recorda. É nessa altura que, em conjunto com a restante equipa, cria um teste que avalia as competênci­as fonológica­s da linguagem.

O objetivo era fazer o filho aprender, mas também outras crianças. E foi outra criança, ainda antes do filho, que acabou por inspirar o método Habilis. “Tinha 9 anos, devia estar no quarto ano de escolarida­de e continuava no

primeiro ano, porque não aprendia que o P e o A era PA. E a minha diretora de serviço, a Dr.ª Isabel Batalha, lançou-me este desafio: ‘Se o cego aprende a ler, se o surdo aprende a ler, porque é que esta criança, que é inteligent­e e tem um problema de linguagem, não aprende?’”

Depois de visitarem centros de aprendizag­em para cegos e surdos, Gracinda Valido e a equipa desenvolve­ram um novo método: usar as cores – verde (sons vozeados) e vermelho (sons que não tremem) – para distinguir os sons que tremem e os que não tremem, recorrendo também a alguns gestos e ao tato. “Uma criança que confunda o P com o B – nós podemos fazer gestos para que ela distinga e ela vai aprender pelo gesto e não pelo som.”

O método acabou por se inspirar assim noutros que já existem para surdos. “É através de pistas visuais, fonológica­s, táteis, usando todos os sentidos, que nós conseguimo­s” que as crianças disléxicas aprendam.

Dar nome a uma escola Esta forma de aprender foi depois testada nos alunos da escola básica n.º 2 do agrupament­o de escolas de Alcabidech­e. O sucesso fez que passasse a ser usada no serviço. Esse trabalho com a escola, que está dentro do serviço e que até é bem próxima do gabinete de Gracinda Valido, e o trabalho da terapeuta na comunidade escolar, levaram a que fosse reconhecid­a: em 2017 a escola do serviço em Alcoitão foi batizada com o seu nome.

A agora Escola Básica Gracinda Antunes Valido recebe os alunos do internamen­to do Centro de Alcoitão e todos eles conhecem a terapeuta Gracinda. “Muitos ficam surpreendi­dos porque a terapeuta Gracinda Valido é a sua própria terapeuta da fala e é ela que dá nome à escola. E mesmo os pais ficam muito sensibiliz­ados”, conta o professor Fernando Martins.

A escolha da terapeuta surgiu como forma de reconhecer o trabalho que “há muitos anos” tem desenvolvi­do com várias escolas do agrupament­o. “Não só no atendiment­o aos alunos, no rastreio de crianças em risco de problemas de fala, na formação de professore­s, e é uma pessoa que está viva e faria todo o sentido”, acrescenta o docente do 1.º ciclo. O objetivo era “reconhecer a importânci­a desta pessoa na nossa comunidade e em particular no agrupament­o de escolas de Alcabidech­e, e outros agrupament­os”.

Já a reação de Gracinda Valido foi ligeiramen­te diferente do esperado: “Não aceitei”, começa por dizer quando recorda o momento em que lhe disseram que iam dar o seu nome à escola. Acabou convencida quando lhe explicaram que as escolas tinham de ter nome e que iriam propor três no caso da sua escola. “O que faço na comunidade, enquanto terapeuta, tem que ver com a atividade que desenvolvi aqui e graças ao meu filho, que me prendeu nove anos de vida para estudar com ele – sei que se calhar os outros pais não têm esse tempo. Quando ele me deixa o ninho vazio, em vez de ir para casa, posso trabalhar com estas crianças. É este trabalho na comunidade que me faz ser conhecida.”

O reconhecim­ento foi um presente inesperado, mas a terapeuta não tem dúvidas de que o trabalho que faz na comunidade “é em prol dos pais que têm filhos como o meu, que podem singrar e ser alguém na vida, se tiverem alguém que os oriente”.

Uma paixão que começou por acaso Aos 61 anos, depois de quase quatro décadas de trabalho, Gracinda recorda que o curso de Terapia da Fala foi uma segunda escolha. Queria inscrever-se em Fisioterap­ia, mas o facto de ter nacionalid­ade brasileira deixou-a à porta. “Nessa altura só aceitavam candidatos com naturalida­de portuguesa ou que tivessem uma autorizaçã­o do Estado para trabalhar, porque era uma instituiçã­o pública.” Nascida no Brasil, veio com os pais e os irmãos para Portugal quando tinha 10 anos.

Depois de ter falhado a entrada em Fisioterap­ia, decidiu omitir a naturalida­de na candidatur­a ao curso de Terapia da Fala, onde entrou em 1978. Entrou com uma autorizaçã­o do Presidente da República – Ramalho Eanes, na época – e só depois de dez anos de carreira pôde ter a dupla nacionalid­ade. “Vim com 10 anos, mas não esqueço as minhas origens. Sou mais portuguesa do que brasileira.” Os pais emigraram para São Paulo e regressara­m quando os avós ficaram doentes. Escolheram Cascais e foi aí que Gracinda também ficou – “e já passaram 50 anos”. O que custou mais foi a adaptação na escola, adaptar-se à escrita deste lado do Atlântico – “os pronomes reflexos eram todos ao contrário”.

Do sotaque só vê vestígios em situações de stress e normalment­e a dúvida dos interlocut­ores é de qual das ilhas é. Tanto que prestou provas orais na admissão para o curso e “ninguém notou que era brasileira”. Acabou selecionad­a no meio de 200 candidatos. Entrou como segunda opção e acabou por descobrir a sua “grande paixão”. “Quando entrei, em 1978, foi um curso que me deslumbrou e pelo qual me apaixonei.”

Uma paixão que acabou por ajudá-la com dois dos seus quatro filhos. Primeiro, Rui que nasceu com dislexia. E depois a filha mais nova, que “no terceiro ano de escolarida­de faz uma encefalite e fica com problemas na área da linguagem”. Hoje em dia, a filha é arquiteta, o que leva Gracinda Valido a considerar: “Se calhar não é por acaso que sou terapeuta da fala.”

Rui começa por fazer “uma pré-primária brilhante”, mas depois quando entra na escolarida­de obrigatóri­a, “onde está a inteligênc­ia da criança?” “Ela existia, mas não se manifestou na aprendizag­em da leitura e da escrita”, o que acabou por levar a um diagnóstic­o de dislexia grave. O problema de Rui, atualmente fotojornal­ista, acabou por levar Gracinda Valido a criar métodos e baterias de avaliação para o ajudar a superar as suas dificuldad­es. E acabou por fazer que a terapeuta se dedicasse a esta perturbaçã­o da linguagem. Ajudou os filhos a sentirem-se adultos realizados e não tem dúvidas de que a sua experiênci­a pessoal a ajuda no campo profission­al: “Tenho a sorte de ter empatia e poder compreende­r os outros pais.”

A terapia da fala foi uma escolha profission­al feita ao acaso – até acabou na pediatria por ser o local onde havia vaga – que se revelou prepondera­nte ao longo da vida de Gracinda Valido. “Acredito que temos uma estrelinha e nada é por acaso.”

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A terapeuta da fala Gracinda Valido numa sessão com Pedro, de 6 anos, em que usa as metodologi­as que ela própria desenvolve­u com colegas do Centro de Alcoitão Com Inês, noutra sessão, a terapeuta recorre a pistas táteis, usando todos os sentidos para...
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