Evocando a idade de ouro do cinema europeu
A dimensão americana da obra cinematográfica de Milos Forman não nos deve fazer esquecer as raízes europeias do seu trabalho
RAÍZES Em 1964, quando Milos Forman, ainda na Checoslováquia, assinava a sua primeira longa-metragem, O Ás de Espadas, o cinema europeu vivia uma idade de ouro. Em Cannes, o vencedor chamava-se Jacques Demy, com uma das suas obras-primas musicais, Os Chapéus-de -Chuva de Cherburgo, enquanto Veneza consagrava Michelangelo Antonioni, com Deserto Vermelho, um dos filmes genuinamente revolucionários da década. Isto sem esquecer que, em França, Jean-Luc Godard lançava os prodigiosos Bando à Parte e Uma Mulher Casada. Enfim, 1964 é também o ano de coisas tão admiráveis como Gertrud, de Carl Th. Dreyer, Diário de Uma Criada de Quarto, de Luis Buñuel, O Evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, ou Dr.Estranhoamor, de Stanley Kubrick (cineasta americano, é certo, mas filme de fabrico totalmente britânico).
Quer isto dizer que a dimensão americana da obra de Forman não nos deve fazer esquecer as raízes europeias do seu trabalho, visão e sensibilidade. O que está em causa, repare-se, não é a “superioridade” de uma qualquer cinematografia em relação a qualquer outra. Além do mais, importa recusar os preconceitos anti-Hollywood, lembrando também alguns títulos marcantes de 1964 como O Grande Combate, visão autocrítica do western por John Ford, ou o sublime Lilith, de Robert Rossen, celebrando o melodrama como perfeito bisturi da alma humana.
Forman foi um criador capaz de conservar a energia dos seus trabalhos iniciais no tão peculiar contexto de Hollywood, preservando mesmo um desejo de realismo cuja pertinência a passagem dos anos reforçou. Nesta perspetiva, cito o muitas vezes esquecido Ragtime (1981), baseado no romance de E. L. Doctorow, encenando as vivências de um pianista negro nas convulsões de Nova Iorque no começo do século XX. Numa altura em que tanto se discute a inscrição da história dos EUA nos filmes de Hollywood, seria útil cultivar todas (mas mesmo todas) as memórias da sua pluralidade interna. Incluindo as que possam ter assinatura de um homem vindo de terras europeias. JOÃO LOPES