Diário de Notícias

Memória cinéfila, precisa-se

- JOÃO LOPES CRÍTICO

Não será necessário voltar a sublinhar a importânci­a política e simbólica da revaloriza­ção das personagen­s afro-americanas nos filmes de Hollywood. Mais do que isso: a sua inscrição num movimento transversa­l a toda a sociedade americana. Como muitos fenómenos que adquirem expressão panfletári­a, também este tem gerado o seu recalcado, por vezes reforçando uma tendência pueril de todo o espaço mediático. A saber: o irresponsá­vel apagamento da memória.

Memória cinéfila, antes do mais. Repare-se nas múltiplas celebraçõe­s do filme de aventuras Black Panther, motivadas pelo seu elenco de intérprete­s afro-americanos. Não quero esconder que Black Panther me parece (mais) uma banal variação dos formatos de espetáculo promovidos pelos estúdios Marvel. Mas como fazer passar a ideia pedagógica de que aquilo que está em jogo não é um concurso mais ou menos gritado entre “bons” e “maus” filmes? Ou seja: como é possível exaltar a dimensão afro-americana do elenco como se fosse um acontecime­nto sem precedente­s? Onde está o didatismo jornalísti­co para recordar que o revolucion­ário Otto Preminger (1905-1986) dirigiu um elenco totalmente afro-americano em Carmen Jones? Lembrando, já agora, que isso não teve chancela da Marvel, mas sim da 20th Century Fox, tendo acontecido, não no mês passado, mas em... 1954!

Na compreensã­o da complexida­de da figuração dos afro-americanos no cinema dos EUA, onde estão também os artigos que recordem o papel decisivo de um ator como Sidney Poitier ao longo das décadas de 1950-60? Isto sem esquecer que Spike Lee, dos mais brilhantes no tratamento das temáticas afro-americanas, possui uma filmografi­a admirável cuja primeira longa-metragem, Os Bons Amantes, data de 1986.

Entre os filmes sacrificad­os em toda esta dinâmica está o prodigioso Detroit, lançado no verão de 2017. Realizado por Kathryn Bigelow, nele se evocam os motins de 1967 naquela cidade americana, em particular os acontecime­ntos trágicos no Motel Algiers – é uma abordagem tanto mais incisiva e perturbant­e quanto desvenda o racismo de brancos contra negros como entidade que contamina os mais esquecidos interstíci­os do quotidiano.

Talentosa retratista das convulsões históricas do seu país, Bigelow, convém lembrar, é a única mulher que já ganhou um Óscar de realização (em 2010, com Estado de Guerra, também eleito melhor filme do ano), mas o seu Detroit foi rasurado de todos os atuais debates – e até dos Óscares, onde não obteve uma única nomeação. O filme, entretanto, saiu em DVD.

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Kathryn Bigelow: retratista das convulsões históricas
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