A estratégia. Qual estratégia?
No final de março, Donald Trump anunciou, muito ao seu estilo, que as poucas tropas americanas na Síria estavam de saída, agora que “o ISIS estava derrotado”. Uma semana depois, o anúncio foi parar à gaveta depois do ataque em Douma com armas químicas, uma monstruosidade imediatamente assacada a Assad. Dois dias depois da tragédia, a Casa Branca voltou à agitação normal, com a entrada em cena de John Bolton, o novo conselheiro de segurança nacional, e as buscas do FBI ao escritório do advogado pessoal de Trump, Michael Dohen. Se o primeiro é conhecido pelo apoio destemperado à aventura no Iraque, e pelo voluntarismo agressivo no tratamento das grandes questões de segurança internacional, o segundo está sob suspeita de encobrimento de mais uma patifaria antiga de Trump. No entretanto, a Rússia vetou, sem surpresa, uma resolução sobre a Síria no Conselho de Segurança.
A primeira decisão de Bolton foi demitir a cúpula em funções da equipa de segurança nacional, o que revela a carta branca que lhe está a ser dada e a forma absolutamente caótica como tem sido montada a Casa Branca desde o primeiro dia. Nunca na história americana, num só ano de mandato, entrou e saiu tanta gente do gabinete de um presidente. Dois dias depois, Trump lançou o primeiro tweet sobre a Síria, abrindo a porta a bombardeamentos punitivos sobre Assad, acionando solidariedades (Paris, Londres, Ancara e Riade), dúvidas (Berlim) e alertas vermelhos (Moscovo). Acrescentemos Israel, Turquia e Irão e percebemos porque dura esta guerra há sete anos.
Mike Pompeo, o novo secretário de Estado, foi ouvido no Senado 24 horas depois, vincando uma abordagem musculada para a Síria sem especificar contornos, enquanto os F18 americanos abasteciam nas Lajes rumo à base de Creta e Theresa May enviava submarinos nucleares para o Mediterrâneo Oriental. Nesse exato dia, sai a notícia que Trump incumbira Larry Kudlow e Robert Lighthizer de encontrarem uma forma airosa para os EUA reentrarem no Tratado Transpacífico, o acordo de livre comércio que Obama negociou com onze nações da região mas que Trump rasgou mal entrou em funções. Como os mesmos onze seguiram sem os EUA e o acordo é economicamente vantajoso para os signatários, Trump parece já ter realizado que afinal não quer, não pode e não manda como e quando quer.
Devo dizer-vos que estes dois parágrafos tiraram-me parte da energia com que parti para este artigo, tal é o efeito do carrossel trumpiano. De qualquer forma, olho para esta dinâmica errática sob dois ângulos mais estruturais do que reféns da espuma dos dias. O primeiro diz respeito à modalidade entretanto já iniciada de ataque americano na Síria, em parceria com Paris e Londres.Vale a pena olharmos para o que aconteceu precisamente há um ano, quando Trump deu ordem para lançar 59 mísseis Tomahawk sob uma base aérea síria na região de Homs, no seguimento de um ataque com gás sarin a civis em Idlib, mais uma vez assacado ao regime de Assad. O exemplo é importante porque, como se constata, não resolveu em nada a proliferação de armas químicas nem sequer diminuiu a vantagem conquistada pelas tropas de Assad sobre várias parcelas do território sírio. Aliás, por artes mágicas, Moscovo avisou Damasco do ataque americano, o que permitiu reduzir os danos causados. Ou seja, uma mera demonstração de poder militar não tem efeitos práticos decisivos no curso da guerra: se é para punir o regime de forma cirúrgica é preciso fazer muito mais.
O dilema está aqui. Mais significa uma via líbia, capaz em última análise de derrubar o regime, o que entra em choque frontal com os interesses russos e iranianos. Se olhamos com preocupação para o caos na Líbia depois do derrube de Kadhafi, imaginem o que não aconteceria na Síria, onde o choque de interesses é incomensuravelmente maior entre Turquia, Irão, Arábia Saudita, Rússia, Israel. Ponho de propósito os EUA fora deste leque por considerar os seus interesses na Síria menores do que os dos outros, o que explica o envolvimento limitado e casuístico desde 2011. Ou seja, pior do que um ataque americano sem efeito prático é um ataque americano sem qualquer tipo de estratégia prévia e posterior. A entrada de John Bolton não pode, sobre isto, sossegar ninguém.
Aqui entramos no segundo ângulo de análise que me parece algo desvalorizado durante a semana: o apoio francês imediato. Macron e Trump são como a água e o vinho, mas a verdade é que o presidente francês não hostilizou o americano, nunca esfriou a relação bilateral (como fez Merkel) nem se colocou num limbo estratégico (como fez May). Pelo contrário: convidou
Trump para o 4 de Julho e no final deste mês irá aWashington com pompa e circunstância. O sinal que Paris dá é triplo. A Londres diz que está pronta a ser o parceiro de segurança privilegiado dos EUA na Europa e nos teatros de guerra vizinhos. A Berlim diz que não está refém da validação às reformas do euro e que tem um caminho autónomo a desempenhar. AWashington transmite não misturar personalidades com interesses permanentes, atuando assim para lá do ciclo político, uma posição de crença na liderança americana que, a seu ver, garante a Paris um papel de relevância acrescida e sustentado no concerto europeu. A lógica é semelhante à que Blair teve com Clinton e Bush filho, embora à época a cumplicidade pessoal fosse total.
O ataque à Síria deve, por isso, ser visto para lá dos danos causados ao regime (não muitos), evitados à Rússia (a toda a linha) ou de uma qualquer clarificação do xadrez regional (Irão de um lado; Turquia, Israel e Arábia Saudita do outro). A verdade é que entre os três protagonistas da investida militar Trump não tem nenhuma estratégia, May está a tentar salvar-se e Macron está a consolidar uma. Estou curioso para ver o que dirá Merkel depois de ir aWashington no final deste mês.