Diário de Notícias

“SALAZAR TINHA DESPREZO POR GRANDE PARTE DA POPULAÇÃO PORTUGUESA”

IRENE FLUNSER PIMENTEL

- JOÃO CÉU E SILVA

Poucos governante­s colecionar­am tantos inimigos como Salazar, com a particular­idade de surgirem não só na oposição mas dentro do seu círculo mais íntimo. A lista é grande, tanto que a historiado­ra Irene Flunser Pimentel precisou de 500 páginas para os identifica­r num manual que intitulou Inimigos de Salazar, arrancando do esquecimen­to muitas das personalid­ades que traíram ou se revoltaram contra Salazar desde o momento em que chegou à pasta das Finanças, em 1926, até ao 25 de Abril de 1974, os últimos seis anos de governação que já não era sua mas em que o legado ideológico se mantinha forte. Entre os muitos verbetes deste quase dicionário da oposição ao Estado Novo encontram-se nomes bem conhecidos da oposição política, mas o destaque da historiado­ra vai para cinco nomes fundamenta­is: dentro da própria “corte”, o general Botelho Moniz; entre os militares que foram fiéis antes de se rebelarem, Humberto Delgado; no meio intelectua­l, Francisco Cunha Leal; na oposição política ativa, Álvaro Cunhal – sem esquecer Mário Soares; e no estrangeir­o Nehru,o líder indiano que invadiu a Índia portuguesa.

Pode conhecer-se Salazar através dos seus inimigos? Basta uma palavra à autora: “Evidenteme­nte.” Acrescenta que se trata de uma forma de conhecer o governante: “Ao ver quem ele elegeu como seus adversário­s e inimigos políticos principais, bem como lidou com eles. Por outro lado, através das estratégia­s e da ação dos seus diversos inimigos políticos, aprende-se mais sobre estes e sobre quem era o seu inimigo principal.” A luta oposicioni­sta é um relato constante neste meio milhar de páginas, apesar de Pimentel considerar que existe uma “cultura de derrota” em tão larga oposição: “Como tantas sublevaçõe­s e outras ações tinham falhado ao longo dos anos, os opositores assumiram que falhariam sempre, e mesmo quando sabiam que iriam perder, como no caso do assalto ao quartel de Beja, não se recusavam a participar. Esta cultura de derrota tinha como resultado a falta de planificaç­ão e de secretismo, ou seja, a outra face da moeda do aventureir­ismo.”

Como a história não trata dos “ses”, diz, nem se verificou uma unidade nem a ausência de sectarismo na oposição, “poucas são as vitórias durante as quatro décadas, a não ser setoriais como a nível da propaganda, com os desvios do paquete Santa Maria e do avião da TAP em 1961. O que procuro analisar melhor no livro é porque falharam as diversas tentativas da oposição para remover Salazar ao longo de tantos anos”.

A frase que está na contracapa – “Todos tentaram derrubar Salazar” – pode parecer uma súmula desta investigaç­ão, mas a autora sugere que seja colocada no contexto: “Os que se opuseram realmente a Salazar – uma minoria dos portuguese­s, que por isso foi perseguida e reprimida – tentaram por formas diversas que fosse derrubado. O que não significa por si só que todos quisessem instaurar a democracia. Os anos da ditadura de Salazar, embora numerosos (1932 a 1968), foram muito marcados em Portugal e a nível internacio­nal por ideologias diversas e por isso foram numerosas as opções políticas e doutrinais, bem como os mecanismos usados pelas oposições.”

Quando se pergunta a Irene Flunser Pimentel se este é o dicionário didático da oposição, a autora responde que “gostaria que fosse” e que “não tenho nada contra”, mas não o quer apregoar: “O que tentei fazer foi elaborar uma espécie de manual para professore­s, alunos liceais e universitá­rios, mas também para todos os que se interessam pela nossa história do século XX.”

Como sobrevive Salazar durante décadas a um cerco generaliza­do?

As razões são várias e devem ser procuradas tanto no regime de Salazar como nas suas instituiçõ­es, e na eficácia destas, como nas diversas oposições, e ainda nos portuguese­s em geral. Salazar soube unir inicialmen­te as várias direitas, monárquico­s, conservado­res, católicos, bem como aqueles que queriam um regime de novo tipo, à semelhança – embora com diferenças – do fascismo italiano, implantado em 1922, na União Nacional. Soube aliciar potenciais opositores – o caso dos católicos sociais, de alguns monárquico­s e nacionais-sindicalis­tas, após cisão no movimento de Rolão Preto e a proibição deste – arbitrando as várias sensibilid­ades. Domesticou as Forças Armadas a partir de 1937 e usou-as na sua defesa. Utilizou a aliança e cumplicida­de doutrinal da hierarquia da Igreja Católica. Criou organizaçõ­es de repressão, PVDE/PIDE, e endureceu a Censura. Referiu os portuguese­s. Como foi? Cativou os portuguese­s através de organizaçõ­es e o corporativ­ismo, que deveria substituir a luta de classes pelo “trabalho” de todos em “prol do bem comum”. Nenhuma ditadura conta só com a repressão, pois esta é usada para combater sobretudo os adversário­s políticos – uma minoria – e também tenta cativar as respetivas populações, com o conhecimen­to das suas idiossincr­asias e com base no seu conservado­rismo. E, no caso português, Salazar tinha desprezo por grande parte da população portuguesa, que conhecia bem. Entre os que o tentaram “derrubar” encontrou alguém que se eclipsasse ou se destacasse mais dos outros? Claramente houve os que se tornaram conhecidos e cuja ação política perdurou após o 25 de Abril, casos de Álvaro Cunhal e Mário Soares, entre muitos outros. Houve aqueles cujas ações mais espetacula­res, do ponto de vista da propaganda contra o regime, se des- tacaram, como foram os casos de Palma Inácio e Camilo Mortágua. Também figuras que vieram do próprio regime mas que se afastaram dele, como Henrique Galvão e Humberto Delgado, que fez o regime tremer com a sua célebre frase nas eleições de 1958 de que demitiria Salazar caso as ganhasse. Todos os grandes dirigentes do PCP, hoje menos conhecidos por razões geracionai­s, como José de Sousa, Bento Gonçalves, Júlio Fogaça ou Martins Rodrigues, entre outros. Realizo também um recuo cronológic­o para os anos da Ditadura Militar (1926-1932), para recordar muitos militares, chamados reviralhis­tas e republican­os, que se envolveram em sublevaçõe­s e revoltas e conheceram o caminho da prisão, deportação e exílio. Uma das figuras hoje pouco conhecidas, Cunha Leal, que participou no 28 de Maio e foi desde cedo (1929-30) um inimigo de Salazar, quase a nível pessoal. Era impossível deixar de vir até ao 25 de Abril mesmo tendo Salazar deixado o poder em 1968? Pensei muito se terminava o livro com a morte política de Salazar, em 1968, no

entanto acabaria por sobreviver fisicament­e mais dois anos. Por outro lado, o seu regime perdurou com a maioria das suas principais caracterís­ticas, embora com algumas diferenças, com Marcelo Caetano. Nomeadamen­te com a continuaçã­o da Guerra Colonial e até uma agudização da repressão. Deixei de fora a ação de um novo tipo de oposição a partir do final dos anos 1960, com novos inimigos, muitos de outra geração, que enveredara­m pela esquerda radical ou atuaram nas organizaçõ­es de luta armada. Fiz o que nos filmes e em literatura se faz muito. Porquê essa adaptação? Achei melhor iniciar com um prólogo – oito anos antes –, para contextual­izar Salazar e os inimigos a partir de 1926, e não quando ele chega à chefia do governo. Terminei com um epílogo para se ter noção de que o regime ditatorial só terminou em 1974, num processo de rutura através de um golpe militar. Um dos casos que dá de críticos intelectua­is é a oposição de Júlio Pomar. Um quadro era uma revolta? Claro que sim. O que lemos em literatura, o que vemos na representa­ção artística ou ouvimos em música, através dos intelectua­is e artistas censurados por Salazar, mas que nunca estiveram com ele, é não só expressão de revolta como apelo à revolta de outros face à injustiça e ausência de liberdade. Sobre os intelectua­is e artistas, o ditador utilizou a arma poderosa da Censura. Qual foi a resposta mais dura aos opositores: deportaçõe­s, assassínio­s?... Nas colónias em guerra, foi a guerra e a morte. Em Portugal, que apesar de tudo estava no continente europeu, havia o cuidado, a partir de 1945, em não usar o assassínio político, apesar de “correr riscos” nesse sentido através das torturas violentas da PIDE. Houve o assassínio de Humberto Delgado e de outros, mas não foi algo utilizado expressame­nte e em grande escala. Curiosamen­te as deportaçõe­s, da monarquia, I República, Ditadura Militar, deixaram de ser usadas na metrópole. Nas colónias, continuara­m por exemplo as deportaçõe­s de angolanos para São Tomé, Tarrafal. A prisão política era o meio principal de espalhar o medo nos que se metessem “na política” e variava consoante as classes sociais e os opositores estivessem num processo inicial de oposição ou fossem dirigentes e funcionári­os de um partido, caso do PCP. A oposição fraquejou no marcelismo? Nem por sombras, a oposição reforçou-se de forma assinaláve­l e diversific­ou-se. A PIDE/DGS aumentou a sua violência à medida que sentia dificuldad­es em domar as oposições, que já não eram as mesmas do que no período salazarist­a. O regime teve de combater no marcelismo o movimento estudantil e laboral, trabalhado­res das classes médias, baixa e média, a oposição católica reforçada, a emigração e a irrupção de uma oposição no seio dos militares devido à Guerra Colonial. Estes opositores que elenca ficaram “vingados” com a Revolução de Abril? Não creio que a história “vingue”, mas resulta de uma dinâmica levada a cabo por diversas forças, desde as de combate às que reprimem e suscitam o imobilismo. O que aconteceu foi que, quando os militares (parte deles) derrubam o regime, as diversas oposições apoiaram-nos, mostrando que existiam, a ponto de estarem prontas a construíre­m um novo regime.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? Inimigos de Salazar Irene Flunser Pimentel Ed. Clube do Autor 493 páginas PVP: 22 euros
Inimigos de Salazar Irene Flunser Pimentel Ed. Clube do Autor 493 páginas PVP: 22 euros

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal