Diário de Notícias

CELESTE RODRIGUES AOS 95 ANOS ”EU QUERO É CANTAR. É A MINHA VIDA”

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MARIA JOÃO CAETANO “Nasci às seis da manhã, à hora em que tudo dorme.” Esta é a primeira frase do livro de memórias que a fadista Celeste Rodrigues está a escrever. E que provavelme­nte nunca vai concluir. “Daqui não passo”, ri-se, resignada. Não é algo que a angustie. Diz que não tem talento para escrever mas que, de vez em quando, saem-lhe uns poemas ou uns motes para uns fados. Por exemplo: “Sou a que fica no cais a ver partir o sonho e a saudade. Sou a que se lança no mais alto cais a encantar sereias e que depois calça sapatos de areia.” Di-lo timidament­e. “Não gosto de mostrar o que escrevo porque não tenho confiança que seja bom. E depois as pessoas fazem perguntas. O que é isto quer dizer? Não sei explicar.”

Celeste não gosta muito de mostrar o que escreve e também não gosta muito de dar entrevista­s. “Não gosto de perguntas”, afirma. Em vez disso, prefere sentar-se a uma mesa, com uma chávena de chá à frente, e tentar ter uma conversa mais informal. E, mesmo que nunca termine as suas memórias, vai contando as suas histórias em conversas soltas. Talvez um dia a filha ou os netos reúnam esse material todo num livro em que se conte como Celeste, três anos mais nova do que Amália, com quem cantava na infância,“não fado, mas folclore da Beira”, e de quem foi amiga inseparáve­l, também se tornou fadista sem nunca imitar a irmã. Amália foi a rainha do fado tornado canção, Celeste manteve-se no fado popular. “Nós somos muito parecidas em muitas coisas mas a nossa maneira de sentir é muito diferente. Eu tenho o meu fado, ela tinha o dela. O dela era muito bom, mas o meu também não é assim tão mau. Somos diferentes”, explica.

Celeste Rodrigues tem 95 anos e no próximo dia 11 de maio vai subir ao palco do Teatro Tivoli, em Lisboa, para um concerto de celebração em jeito de despedida: “É para ficarmos com uma recordação, não sei se estou cá para o ano e pelo menos 73 anos de carreira já merecem qualquer coisinha”, justifica. “E depois é uma reunião de amigos, na plateia e no palco. Isso é agradável.” A produção garante que será um concerto com muitas surpresas e prepara-se para gravar este espetáculo para o qual Celeste Rodrigues convidou Katia Guerreiro, Fábia Rebordão, Jorge Fernando, Hélder Moutinho, Teresa Landeiro e Duarte Coxo (a lista não está ainda fechada).

Mas, quando lhe perguntamo­s se a Madonna também foi convidada para o palco, Celeste Rodrigues fica até um bocadinho irritada. Já está farta que lhe falem da cantora que está a viver em Lisboa e que se referiu à fadista como“a lendária Celeste Rodrigues”. “Parece que estou a fazer propaganda a mim própria e eu não gosto, nunca precisei disso, não preciso de nenhuma fama, eu gosto de cantar e é isso que eu quero, cantar. Ela foi simpática em gostar da minha voz e foi só isso.” Fim da conversa.

No Tivoli irá cantar os seus fados de sempre. “Na altura decido. A gente nunca sabe o que é que vai cantar, antes dizemos aos músicos canto esta e aquela, mas, às vezes, mesmo no meio do espetáculo, não nos apetece cantar aquilo que pedimos. Na altura eu sinto aquele mais do que o outro e tenho de o cantar.” E continua: “É muito difícil cantar fado. É bom mas é difícil. Não se consegue explicar o que é o fado, sente-se.” Quando sobe ao palco, isso é o mais importante: “Quando eu canto estou lá toda, entrego-me.”

Muitas pessoas confundem essa entrega com um sofrimento que associam ao fado. Celeste Rodrigues não podia discordar mais desta ideia. “Esse sofrimento não é do fado. Para mim o fado é beleza e emoção.” Pelo contrário, considera-se uma pessoa “muito alegre e bem-disposta”: “Nunca tenho dias negros, só se há gente doente na família ou se estou com falta de ar.” E lança mais uma das suas gargalhada­s. “Eu quero é cantar. É a minha vida. Tenho impressão que vim ao mundo para cantar.” E, por isso, não gosta de olhar para trás nem de fazer balanços. Prefere olhar para para a frente. “Eu realmente não me canso de cantar, posso estar um dia maldispost­a e penso hoje não vou, mas depois começa um bichinho, ai, não, tenho de ir. E lá vou eu. E depois corre bem.”

São 95 anos de vida, 73 de carreira (se não se contar com as canções que já cantava em pequena, nas festas, casamentos e batizados). Celeste já não consegue fazer as notas mais agudas mas aprendeu a cantar os fados antigos num tom mais baixo: “Depois de tantos anos, a gente aprende a defender-se e pelo menos já não dou fífias”, conta. “Eu perdi a voz, mas ganhei emoção. Uma pessoa quando tem mais idade, quando é mais crescidinh­a, sente as coisas de outra maneira, já passou por elas e dá-lhes um valor diferente. Quando se é muito jovem olha-se mais para a sombra” – o que ela quer dizer é que em nova dá-se mais importânci­a à imagem. Mas não agora. Não tem cuidados com a voz, continua a comer gelados e a comer azeitonas sempre que lhe apetece, e também nunca teve problemas de memória, pelo menos quando está a cantar. “Talvez porque canto devagarinh­o, baixinho.” E em mais uma tirada de bom humor: “Eu não acordo ninguém.”

“Ando sempre a cantar, ando sempre lá, lá, lá.” E nisto levanta os braços e levanta ligeiramen­te a voz. “É uma coisa que está na minha pele. Na pele, nas veias, está em todo o lado. Na minha sensibilid­ade. Por isso é que me custa muito deixar de cantar. Porque se eu deixar de cantar, acho que fico mais triste e com menos beleza na minha vida.”

Para o concerto convidou alguns fadistas amigos. Mas não Madonna: “Ela foi simpática em gostar da minha voz e foi só isso”

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Celeste Rodrigues, ontem num chá com a imprensa no Tivoli BBVA, contou que continua a cantar, todos os dias: “É uma coisa que está na minha pele. Na pele, nas veias, em todo o lado”

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