Diário de Notícias

DIVULGAR VÍDEOS DE INTERROGAT­ÓRIO É CRIME SEM CASTIGO

O MP vai abrir um inquérito à divulgação das imagens dos interrogat­órios a José Sócrates. Um caso semelhante foi arquivado

- VALENTINA MARCELINO

“O primeiro choque foi ver aquelas imagens a ser transmitid­as. O segundo choque, até maior, foi constatar que as entidades que é suposto protegerem os cidadãos nada fazem.” Este foi o sentir, partilhado com o DN, por uma fonte que tem acompanhad­o a defesa do ex-diretor do SEF Manuel Palos, que está a ser julgado no processo dos vistos gold. Referia-se à divulgação ilegal das imagens do primeiro interrogat­ório judicial a Palos, em novembro de 2015, no mesmo dia que o ex-ministro Miguel Macedo sofria a mesma violação.

Em nenhum dos casos, apesar de ser reconhecid­o o crime pelo Departamen­to Central de Investigaç­ão e Ação Penal (DCIAP), o canal de televisão que transmitiu esses vídeos foi punido. Ontem e na segunda-feira, a SIC transmitiu as imagens dos interrogat­órios ao ex-primeiro-ministro José Sócrates (assim como a outras pessoas como Ricardo Salgado, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava). O Ministério Público (MP) considera que o canal de Carnaxide “incorre num crime de desobediên­cia (art. 348.º do Código Penal)” e “decidiu instaurar inquérito para investigar os referidos factos”. Segundo o Código do Processo Penal (CPP), as peças processuai­s de um inquérito, como as gravações audiovisua­is, mesmo que o processo já não esteja em segredo de justiça, só podem ser divulgadas na comunicaçã­o social com o consentime­nto dos visados.

“Trata-se de mais uma tentativa de enxovalhar o engenheiro José Sócrates”, assinala o advogado Pedro Delille, salientand­o que, no entanto, “o tiro saiu pela culatra a quem teve essa intenção. Os interrogat­órios vêm demonstrar aquilo que temos repetidame­nte afirmado: a acusação não tem qualquer fundamento em factos e muito menos em provas. Chega a ser confranged­ora a incapacida­de dos procurador­es em sustentar o que levianamen­te afirmam. Na verdade, os interrogat­órios só confirmam a vacuidade da acusação”. “Pornografi­a judiciária” Macedo e Palos apresentar­am, logo na altura da transmissã­o das imagens, uma queixa ao MP. Nem Castanheir­a das Neves, que defende o ex-ministro, nem João Medeiros, advogado de Manuel Palos, quiseram comentar os casos. O processo de Miguel Macedo está ainda pen- dente. O do ex-diretor do SEF foi arquivado pelo MP e a Entidade Reguladora para a Comunicaçã­o Social (ERC) limitou-se a intimar a estação televisiva em causa (CMTV ) a não repetir o feito.

Segundo pode ser lido na deliberaçã­o da Entidade Reguladora para a Comunicaçã­o Social (ERC) em relação à queixa de Manuel Palos, de março passado (mais de dois anos depois), o DCIAP, apesar de reconhecer que se estava perante um crime e considerar que o exercício da liberdade de imprensa (invocado pela CMTV ) poderia ser alcançado apenas “com o acesso à informação dos autos e seu relato circunstan­ciado”, concluiu que não valia a pena o inquérito.

“Atendendo à exposição jurisprude­ncial maioritári­a, será ineficaz conduzir um processo por conduta de desvirtuam­ento da legalidade”, é escrito. Manuel Palos não esteve disponível para fazer declaraçõe­s, apesar da insistênci­a do DN, mas na denúncia à ERC salientou que “a divulgação pública e generaliza­da do interrogat­ório” a que foi sujeito enquanto arguido teve “um único e hediondo objetivo – julgamento na praça pública”. Diz ainda que não só ele próprio, “mas também a sua família, foram alvo com esta demonstraç­ão de voyeurismo” e que só compreende esta conduta como “um ato destinado a descredibi­lizar e humilhar o queixoso, sujeitando-o a um espetáculo desumano”.

Ao longo da tarde, o DN tentou obter comentário­s de constituci­onalistas e responsáve­is ligados à Justiça, mas a maioria não quis sair do anonimato. “Estamos num ponto em que parece que não há limites para nada, não há valores”, afirmou um ex-titular da pasta da Justiça. O constituci­onalista Pedro Bacelar Vasconcelo­s, que preside a comissão parlamenta­r dos Assuntos Constituci­onais, Direitos, Liberdades e Garantias, não contém a sua dura crítica: “Como constituci­onalista e cidadão, só tenho uma palavra: nojo!”

Para o professor de Direito Constituci­onal Jorge Bacelar Gouveia, a transmissã­o destas imagens é totalmente desnecessá­ria para informar. “É necessário proteger o direito à privacidad­e e à imagem, pelo que este género de práticas, não sendo necessária­s para o exercício da liberdade de imprensa, ofendem os direitos dos arguidos e não acrescenta­m nada à informação dada ao público”, afirma.

João Taborda da Gama, professor universitá­rio e colunista do DN, é ainda mais incisivo: “Considero a transmissã­o de um interrogat­ório de um arguido um ato de pornografi­a judiciária exibida em horário nobre. Temos de ser muito exigentes quanto a este ponto, independen­temente de o arguido ser deste ou daquele partido, e independen­temente de o órgão de comunicaçã­o social que o faça”, disse ao DN.

“Este género de práticas ofende os direitos dos arguidos e não acrescenta nada à informação que é dada ao público”

JORGE BACELAR GOUVEIA CONSTITUCI­ONALISTA

“Considero a transmissã­o de um interrogat­ório de um arguido um ato de pornografi­a judiciária exibida em horário nobre”

JOÃO TABORDA DA GAMA COLUNISTA E PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

“Como constituci­onalista e como cidadão, só tenho uma palavra: nojo!”

PEDRO BACELAR VASCONCELO­S CONSTITUCI­ONALISTA E PRESIDENTE 1ª COMISSÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

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A defesa de José Sócrates diz que “o tiro saiu pela culatra” a quem quis divulgar as imagens dos interrogat­órios.“A acusação não se fundamenta em factos”

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