Diário de Notícias

Em Cabo Verde, Alfama está à mesma distância que Nova Iorque

A Marcha de Alfama desfilou na Cidade da Praia durante o Atlantic Music Expo e volta a fazê-lo hoje, dia em que começa o Kriol Jazz Festival, que ali leva músicos como Sara Tavares ou Seu Jorge: um caleidoscó­pio

- MARIANA PEREIRA

As crianças fardadas do Liceu Domingos Ramos, no centro da Cidade da Praia, misturavam-se com o som da percussão e do búzio que saía já dos grupos Afro Abel Djassi, Tabanca da Achada Grande e Tabanca da Achada de Santo António. Estavam vestidos a rigor, tal como os seus vizinhos, a Marcha de Alfama, que os haveria de seguir cidade abaixo, e de quem se ouviam já os sopros e as vozes. Eram cerca de 40 marchantes vestidos nos trajes em que venceram as Marchas de Lisboa de 2017, com a canção desse ano na boca Não toquem na minha Alfama, a desfilar Avenida Amílcar Cabral fora, na terça-feira, segundo dia do Atlantic Music Expo (AME), que desde 2013 leva à capital cabo-verdiana artistas, programado­res e produtores de todo o mundo (este ano de 35 países).

Era a hora da saída do trabalho e da escola. As pessoas paravam nos passeios para assistir – e quase impreteriv­elmente filmar com os telemóveis –, as crianças dançavam, as cabeças assomavam às janelas, as obras, quando as havia, paravam, as portas das casas abriam-se. Como a de Silvéria, de onde saiu logo o neto pequeno a dançar. Pergunta: “Lisboa?” Ao lado, uma criança pequena de fisionomia chinesa bate palmas ao colo da mãe, dando conta da forte presença daquele país na cidade, onde em cada esquina se encontra uma loja gerida por chineses e onde em plena avenida pedonal está, desde 2015, o Instituto Confúcio.

Fatinha não tem dúvidas de quem lá vem a cantar. “Viva Alfama!”, lança em frente à Igreja de Nossa Senhora da Graça, contando que já várias vezes assistiu ao desfile. Muitos já viveram em Lisboa e, além disso, também aqui os Santos Populares são celebrados.

Na chegada à Praça Alexandre Albuquerqu­e, a Marcha de Alfama era esperada pelo primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva, admirador confesso das marchas. À frente, os grupos locais abriam caminho, numa pisada nunca insignific­ante. “A tabanca, como o batuque, era proibida pelos portuguese­s. Depois de 1975 como forma de revindica- ção do espaço, de afirmação, o desfile das tabancas termina sempre no Plateau [zona da cidade onde estávamos, no centro, elevado em relação ao resto]. Antes eles não podiam subir ao Plateau, onde era o poder central. Parte do que acontece aqui também tem esse sentido: Agora podemos!” É Ivan Santos, da Câmara Municipal da Praia, quem o explica. Hoje, dia em que o AME “entrega a pasta” ao Kriol Jazz Festival, que até sábado traz à Praia Sara Tavares, Seu Jorge, Ayo ou uma homenagem aos Tubarões & Bulimundo, a Marcha de Alfama volta a desfilar.

Nessa manhã discutia-se em torno do tema América: Como entrar no continente? A conferênci­a decorria no Palácio da Cultura Ildo Lobo, mítica voz cabo-verdiana de quem o português Marco Oliveira, no showcase que ali fez nesse dia, cantaria Incondicio­nal. E lá estava, à janela a cantar também entre o público, Elida Almeida, uma das novas grandes vozes cabo-verdianas. (No AME o panorama é assim mesmo, caleidoscó­pico).

Jordana Leigh, que dirige o David Rubenstein Atrium do Lincoln Center e é responsáve­l pelos eventos gratuitos de artes performati­vas que têm lugar naquele átrio em Nova Iorque, onde leva artistas de todo o mundo, dizia: “Eu programo para garantir que em Nova Iorque todos se sentem representa­dos.” É por isso que em junho, depois dos tuaregues argelinos Imarhan e de Noura Mint Seymali, da Mauritânia, Elida vai atuar naquele espaço, onde Jordana espera que a comunidade cabo-verdiana da cidade apareça. Os EUA são o mais antigo e maior destino da imigração cabo-verdiana, cuja diáspora é maior do que os seus habitantes. O Ministério das Comunidade­s estima que a população cabo-verdiana naquele país seja o dobro dos habitantes: um milhão.

Elida – que com Lucibela atuara na noite anterior num clube da Praia para os participan­tes do AME – já deu concertos em Boston, Providence, e até Austin (onde a comunidade é reduzida). Perguntamo­s-lhe se ainda existe esse sonho americano de que nunca deixámos de falar. “Sim. Uma criança aqui já cresce com a ideia: o ponto alto da minha vida é a chegada aos EUA.” Quando foi atuar lá, recorda, encontrou “colegas da escola, vizinhos. É uma emoção muito forte. Conseguimo­s ver pessoas que nos viram crescer. Faz que o concerto fique mais íntimo, tem pessoas ali que me conhecem, e que estão com saudade di terra”.

E nem Donald Trump deixou de comparecer ao AME, aparecendo naquela manhã na Praia pela voz de Jordana, enquanto falava da dificuldad­e de os artistas obterem um visto para cantarem no país. Algo que já existia nas anteriores administra­ções, embora “a pressão agora seja maior”, explicou ao DN. Ao início da tarde, a notícia da morte de Dona Ivone Lara, figura maior do samba, circulava.

À noite, tudo isso (e o que mais houvesse) seria exorcizado pelos congoleses Jupiter & Okwess no palco. A jornalista viajou a convite da Tumbao

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Não toquem na minha Alfama ouviu-se na Avenida Amílcar Cabral no segundo dia do Atlantic Music Expo

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