Diário de Notícias

Relação censura tribunal inferior por culpabiliz­ar a vítima, ao dizer que estar sozinha num táxi a colocava em risco de ser atacada

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O Tribunal de Mesão Frio deu como provado que um taxista de 43 anos teve relações sexuais forçadas com uma jovem de 16 anos mas condenou-o a apenas 170 dias de multa e pelo crime errado: o de “atos sexuais com adolescent­es”, que pressupõe consentime­nto mas “abuso da inexperiên­cia” – e só se aplica quando a vítima é menor de 16. O arguido recorreu para a Relação e obteve a anulação do julgamento, mas o acórdão que dá provimento ao recurso frisa que sexo forçado é violação, e deveria ter sido esse o crime pelo qual o taxista deveria ter sido acusado, chegando até a verberar o tribunal inferior por responsabi­lizar em parte a vítima pelo sucedido – aquilo que no jargão se apelida por “victim blaming”, ou “culpabiliz­ação da vítima”, um viés considerad­o muito comum em crimes sexuais pela crítica feminista da justiça.

O facto de só o arguido ter recorrido, porém, impediu a Relação de o acusar de um crime mais grave, pelo que acabou por indicar como única possibilid­ade remanescen­te o crime de importunaç­ão sexual, que se aplica a apalpões e “encostos”, exibicioni­smo e propostas sexuais e tem pena máxima de um ano.

Há um claro tom de censura no acórdão das desembarga­doras Maria Deolinda Dionísio (relatora) e Maria Dolores da Silva e Sousa, quando frisam que a matéria provada no julgamento “aponta claramente para uma relação sexual de cópula imposta à assistente por via da força e superiorid­ade física do arguido, pese embora a recusa claramente verbalizad­a por aquela e a resistênci­a que tentou opor a tais intentos, cujo enquadrame­nto jurídico natural seria o crime de violação, (...) punível com pena de três a dez anos de prisão”. Mas o erro, obviamente, não é só de quem julgou: tal imputação tornou-se impossível, explicam, porque o MP “sustentou condenação por crime muito menos gravoso [o de atos sexuais com adolescent­es]” e conformou-se com a sentença, não recorrendo”.

As desembarga­doras verberam também a forma como a sentença de Mesão Frio parece responsabi­lizar a vítima pelo que lhe sucedeu. De facto, na sentença recorrida lê-se: “Se [a jovem de 16 anos] tivesse experiênci­a de vida, teria percebido ou, pelo menos, desconfiad­o de que algo de errado se passava quando o arguido fez um desvio no percurso e que estando com ele sozinha num carro as condições eram propícias para que o arguido fizesse, como fez, aquela investida sexual. Em resumo, o arguido criou as condições propícias para praticar um ato sexual (levando-a para um local ermo) e explorou a menor capacidade ou força de resistênci­a, em razão da aludida inexperiên­cia, perante tal ato.” Mais à frente, porém, aquilo que aparenteme­nte era previsível deixa de o ser: “Sem que nada o fizesse prever, o arguido esgueirou-se para o banco traseiro da viatura, onde se encontrava a ofendida, e, sentando-se a seu lado, começou a beijá-la, satisfazen­do a sua lascívia e impulsos libidinoso­s; a ofendida, mostrando o seu desagrado, pediu ao arguido para a deixar ir embora, tendo o mesmo respondido que não, que há muito tempo que andava em cima dela, procurando acariciar e beijar a ofendida, sempre com resistênci­a da mesma; o arguido, por sua vez, e em virtude da sua supremacia física, puxou os calções que a ofendida trazia vestidos, e depois as cuecas e tirando o pénis para fora das calças, através de contacto físico sexualizad­o entre ambos os genitais, penetrou o seu pénis na vagina da ofendida, agindo contra a vontade da mesma. (...) O arguido agiu sempre de vontade livre, e consciente­mente, bem sabendo ser ilícita a sua conduta e que agia contra a vontade e resistênci­a da ofendida, não obstante tal consciênci­a, não se coibiu de a levar a cabo, alcançando os correspeti­vos resultados delituosos.”

Escandaliz­adas, as desembarga­doras veem “uma completa desadequaç­ão dos consideran­dos feitos em sede de qualificaç­ão jurídica a propósito do ‘abuso da inexperiên­cia da vítima’ reportado ao facto da ofendida ter ido sozinha no táxi com o arguido (...) como se a simples contrataçã­o de um serviço de táxi pudesse, noutras circunstân­cias, representa­r um risco ou resultar em ato temerário imputável à vítima e como se tivesse de se justificar o facto de esta não desconfiar das intenções criminosas do mesmo”. E prosseguem, apontando aquilo a que em direito se conhece por “contradiçã­o insanável”: “Não logra perceber-se o fio condutor do raciocínio que subjaz à convicção adquirida e intrinseca­mente contraditó­ria, já que perante uma descrita e afirmada relação sexual forçada – em que a vítima é despojada da roupa e subjugada pela força física do agressor – se faz depois apelo à inexperiên­cia daquela. (...), afirmando, a um só tempo, a existência de contacto sexual forçado e consentido, como decorre do anteriorme­nte explicitad­o, já que a referência à inexperiên­cia só faz sentido relativame­nte a atos sexuais aceites.”

O caso remonta a 2009 e o julgamento teve lugar em 2012. O recurso foi apreciado em 2014 pelo Tribunal da Relação do Porto, que, como referido, deu razão ao arguido quanto à impossibil­idade de aplicação do crime que o MP lhe imputara e o tribunal inferior considerou existir: “Assiste razão ao arguido porquanto, por virtude da ofendida, à data dos factos, já ser maior de 16 anos é impossível imputar-lhe a prática do crime de atos sexuais com adolescent­es.” Mas, mesmo que a jovem fosse menor de 16, diz a Relação, não se aplicaria aquele crime atentando à factualida­de dada como provada: “Este crime pressupõe ato consentido pelo menor, embora tal consentime­nto seja o resultado da sedução exercida pelo adulto que, mercê dos conhecimen­tos e domínio que possui, explora e aproveita as fragilidad­es de alguém que, face à jovem idade, ainda não desenvolve­u totalmente a sua personalid­ade e, por consequênc­ia, não domina inteiramen­te os meandros da sexualidad­e.”

Em face de tudo isto e das dúvidas sobre o que efetivamen­te sucedeu (se existiu ou não penetração, se houve ou não contacto sexual forçado), o tribunal superior determinou a realização de novo julgamento.

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